Ato de Café

(...)


- Deveríamos deixar de viver desse jeito.
- Como assim, Téo?
Em terceira pessoa, Gaia. Enxergando-nos de longe. Faço tudo como se me observassem: cabelo, roupa e copo. Sinto-me culpado por aquilo que não fiz. Você sente isso? Consegue se olhar de longe?
- Não.
- Por isso você é feliz.

Téo vira o copo, matando de súbito a dose que continha nele. Gaia não tinha decifrado a bebida; não precisava. De amarga, bastava a vida. 

Sobre a obviedade do ano novo

Em Dezembro todo cronista mostra a cara. É o mês da balança; um plantão para as reflexões do dia-a-dia que se acumularam até a chegada do ano novo. Até quem não escreve faz votos públicos por meio dos caracteres recheados de clichês e expectativas. As timelines das redes sociais ficam pequenas.

Quisera eu ser um Drummond e profetizar em Dezembro umas e outras coisas belas sem deixar de reconhecer as ruins. Mas o tempo não ajuda. Eu poderia dizer um sem-número de palavras capazes de adjetivar essa saga de trezentos-e-sessenta-e-cinco-dias que a gente chama de ano, reclamando e comemorando durante doze meses; mas não consigo.

Falta originalidade ao tempo. Quem sabe se o ano durasse uma década, ter-nos-ia assuntos novos e motivos de sobra para bater no peito e esperar o novo ciclo com um saldo positivo nos bolsos. A definição ocidental para o tempo se limitou à um petardo de estereótipos.

Você, senhora – coroa de dois filhos, marido e presente pra comprar – até vai conseguir entrar na academia depois da segunda semana de Janeiro e colocar em prática uma ou outra receita da Ana Maria quando o colega de trabalho do seu esposo for jantar na sua casa; mas não vai durar – no máximo até Abril, quando o Fantástico explicar a farsa da sua dieta.

Você, senhor – carro financiado, barriga de chope e contas a pagar – até vai conseguir beber menos, cortar o cigarrinho e atender ao que sua esposa católica apostólica romana pediu na época da quaresma e da menopausa; mas não vai durar – perderá o ritmo no primeiro churrasco antes do sábado de aleluia.

Você, adolescente – bixo de faculdade, com namorada nova e passado ilibado – até vai conseguir estudar, ser fiel e manter a forma e a convicção política longe de casa; mas não vai durar – verá de camarote tudo desabar depois da primeira cervejada da atlética e até vai achar graça nisso tudo enquanto estiver de ressaca.

Antes do meio do novo ano todos os votos e expectativas vão por água abaixo, escorrendo pelas mãos numa cusparada do destino. Os mais velhos se deixam levar por não ter mais nada a perder; são traídos pelo corpo. Os mais jovens corrompem a ideologia adotada em Dezembro ainda no começo do ano seguinte, quando chega o carnaval. Os mais velhos prometerão castigo aos mais novos; e estes saberão que aqueles não vão colocar a pena em prática, pois fizeram a mesma coisa em tempos passados.

Contenho-me com os pedidos e ambições de ano novo; chego a este sem quem era essencial na minha vida. Não encontro motivos para comemorar réveillon, senão por poder passar de um 31 de Dezembro para um 1º de Janeiro. 

Ato de Domingo

(...)

Téo entra no cômodo e logo se senta. Não por acaso – mas por coincidência – a música ambiente calejava a respectiva cena. Solo; tanto ele como as cordas.  Não pensava em nada naquele momento, exceto no fato de que era domingo e de que isso seria o bastante para não se ocupar com nada; afinal, não conseguiu dar continuidade em nenhum dos planos elaborados diurnamente na cama.
- Domingo tem dessas coisas – pensou ele.
Gaia abriu a porta, absorvendo num ímpeto todo cenário com que se deparava e, de súbito, interrogou o status da alma alheia: 
- Está triste?
- Estou.
Mas talvez não estivesse. Respondeu num susto, com a certeza de que a resposta calaria a interlocutora. O disparate foi como uma denúncia transcendental. Como se nos azulejos da parede à sua frente estivessem colados um par de espíritos, resistentes a sabonetes e detergentes, mas inertes às demandas da rotina humana.
Ela não contestou. Em dias assim a ausência se basta. Téo alongou os braços sem nenhuma razão lógica para tal ato; e suspirou. Gaia respeitou o minuto e tornou a abrir a porta.
- Você também está assim? – interrogou o rapaz de modo a frear a passada da mulher.
- Assim como? Triste?
- Não.
- Como então?
- Como se não fosse possível viver sem consciência e você estivesse necessariamente disposto para tanto.
- Como naqueles momentos em que a gente não encontra o ar?
- Mais ou menos. Como se para encontrar o ar nós precisássemos da boa vontade dos Deuses e do bom senso dos espíritos.
- Acredita em espíritos?
- Só nos ruins. As boas almas do outro plano nunca me apareceram em momentos de solidão; diferente daquelas obscuras de que me lembro desde as noites mais remotas da infância.
- E nos Deuses, você acredita Téo?
- Apenas nos distraídos. Talvez isso explique o destino. Coisas boas e ruins acontecendo sem prévias justificativas, mas com explicações póstumas, ainda que não plausíveis.
- Talvez isso explique a sorte e o revés.
- Talvez.

De outras cartas e elegias

De que vale, se de tudo fui testemunha? De que vale se não há pra quem contar? O passado não passa de um guardanapo engordurado. No seu caso, um rascunho bem feito de uma caricatura minha. Choro agora – e tenho no meu choro mais sinceridade do que qualquer discurso político. Um soco no estômago. Crime   torpe em minha rotina. Sinto falta do silencio que não incomoda. Quem saberá o que se passou antes do ápice de sua ausência? Somos separados por minutos. Que se danem os espíritas se o meu apego te puxa de volta. Ainda lembro-me das esquinas. Ainda choro com tuas músicas. Prefiro-te aqui por perto. Sem choramelas nem demagogia; só saudade. Quero alguém pra pilotar o Jipe azul; quero alguém pra acertar o alvo; quero alguém pra arrumar meu acampamento quando eu não estiver em condições de fazê-lo. Quero te pedir perdão – se houver razão; ainda que tarde. Sou caricatura d’um retrato que foi embora.

Politicamente saudável

Ando perdendo o respeito aos homens. E não falo do respeito atinente aos princípios sociais – como aqueles pregados nas igrejas, dinâmicas escolares e ceias de natal. Digo do respeito enquanto sinônimo de esperança, lendo-se também mulheres quando escrevo no gênero masculino.

Acontece que acabo de chegar de São Paulo. Um amigo estava dando (mesmo) uma volta ao mundo e acabara de vir direto do Irã. No fim de semana na terra do Arnesto fui à mostra internacional de cinema, ao samba do bule, tomei cerveja na Augusta e conheci um perspicaz cineasta da Cerqueira César. Um mineiro na gema paulistana. Releva-se também – como motivo para tal crônica – que ando lendo Roberto Freire e hoje acordei com o som de um diálogo metafísico entre minha mãe e suas orquídeas. É aí então que veio a conclusão n’um petardo semanal: ando perdendo o respeito aos homens.

Comecemos por São Paulo. O metrô da linha verde em SP é freqüentemente cenário de uma disputa niilista. Percebe-se que – apoiada à janela – sempre há uma morena indie de panturrilha definida disputando a cena Nouvelle vague com um rapaz de camisa xadrez e óculos wayfarer. Ambos os jovens se fitam. Ela – vestindo um mau-humor de falsa TPM traduzido pela bolsa indiana comprada na Praça Benedito Calixto – sente pelo cara um interesse substancialmente suficiente para convidá-lo a ir ao Franz Café, oferecer um cappuccino, discutir Woody Allen, e então levá-lo ao seu apê a fim de dar ao rapaz magro, sua vagina não-depilada de menina bem-resolvida. O cara, por sua vez, desde a primeira vista faz cara feia. Entra no metrô estático e estaciona no encosto mais próximo. Como já dito, ambos se fitam. Mas de nada adianta. A barba por fazer só traduz o interesse na garota. Imagina convidá-la para ir tomar Serra Malte na esquina do Charm, depois levá-la ao cinema no Espaço Unibanco e por fim discutir Nelson Rodrigues na poltrona laranja da livraria cultura. De nada adianta. Nenhum dos jovens esboça qualquer ato, qualquer movimento a fim de dar continuidade à hipotética situação de fim de tarde. O amor globalizado desse nosso Brasil de Lula resume-se na máxima de “não correr atrás”, onde não demonstrar interesse é sinônimo de charme e superioridade social. Já diria Bruno Graziano, os jovens do metrô da linha verde abandonaram as esquinas e estão rumando cegamente ao intocável cenário do romance facebookiano.

No samba do bule presenciei outro paradigma; uma cena não só ocorrida em SP como em qualquer lugar desse país. Daremos o nome de síndrome do vira-lata. Em volta da roda, espalhadas pelo galpão e até na fila do banheiro, mulheres lindas se encontravam presentes. Como em qualquer ambiente de descontração regado à cerveja e música, encontravam-se também diversos rapazes. Samba vai samba vem, nada parecia acontecer. Os rapazes se agrupavam, fitando de longe a beleza das presentes. Não-iniciativa. A cena se antecipava aos casais numa onda de timidez anos 80. A maioria dos homens não intentava nenhuma atitude calorosa quando deparados com uma mulher bonita com cara de cu. Pareciam se sentir inferiores, ameaçados pelo inconsciente rabo de saia de falso-chame.  Sino no pescoço. Síndrome de vira-lata.

É o fim do olho no olho. É o fim das esquinas. O adeus das sextas-feiras. Voltemos. Já dizia eu que estou lendo Roberto Freire. Leitura coincidentemente sugestiva diante de tal contexto semanal. Explico. Em Ame&dêvexame o autor conclui a escassez da liberdade no amor; e vice-versa. Analogicamente, é justamente o que anda acontecendo. Essa adesão às ondas virtuais só serve de vestido estereótipo. O feminismo agora ataca como um advento necessário a toda menina que passou dos treze, exilando o encantamento dos cortejos e bons costumes. É tempo de extremismos. Num mundo de sete bilhões de mentes, ironicamente o pluralismo é bem menor. Centenas compartilham opiniões em comum e curtem incansavelmente a mesma coisa cada vez mais; não se preocupando em criar, produzir ou buscar concepções próprias e originais. Uma chuva preguiçosa de auto-suficiência feminina nas timelines mundiais. As feministas exigem um pré-contato virtual antes do primeiro encontro. Há nessas mulheres a ideia de que não há mais a necessidade de um grande homem à frente de uma grande mulher.

Ando perdendo o respeito aos homens. Entre o politicamente correto e o incorreto; escolho o politicamente saudável. 

Panela velha


Toda a particularidade do Domingo está no fato de que nos sobram tempo e ócio suficientes para alcançar pouca produtividade ao longo do dia. Num breve resumo: alguns vão à missa, outros assistem às corridas e os – perspicazes – retardatários continuam dormindo. Ocorre que, sem sucesso em nenhuma das alternativas colocadas em evidência, aderi ao que receitava o sabido poeta lusitano e resolvi fazer ten(ç)ão de todas as coisas da vida.

Não havia momento mais apropriado do que o almoço. Pra quem não sabe, cozinhar sozinho é uma atitude tão introspecta, ociosa e particular quanto o cafezinho dos professores de filosofia – entenda-se tal introspecção como aquele momento em que nos vêm à cabeça um petardo de merdas (!) – de todos os lugares e qualidades; e então nos lembramos do vencimento da conta, da prova de quarta e da cerveja de sexta.

Pois bem. Estava eu cozinhando o arroz dominical sem nenhuma pretensão filosófica quando, por acaso, me atentei à facilidade com a qual os grãos se soltavam do negro e desgastado fundo da panela. Não era o óleo. Tinha certeza. Em outros recipientes o arroz não era tão brilhoso e nem tão soltinho. O mérito era todo da panela – o mais antigo apetrecho do cômodo refeitório.

Enquanto terminava meu simples prato de arroz branco me veio à mente uma corrente de notas da semana. E, misturando o almoço com as notícias – numa sagacidade de sábio chinês – cantei: panela velha é que faz comida boa (!). Explico.

Ontem, no seleto núcleo Repnóia de amizades, recebemos uma boa nova de Rodrigo Gonçalves – que de nova, não tem nada. Nosso saudoso amigo nos confidenciou suas eróticas aventuras com sua deusa Milf. Foi o bastante para que cada um do grupo se lembrasse de suas próprias façanhas com as titias do bar. Pois então; mudemos agora de cômodos, e vamos da cozinha para o quarto.

Milf ou coroa, tanto faz. O importante é ter idade e experiência o suficiente para fazer direito. Todo homem que já experimentou – desde cedo e intensamente – da boemia sabe o deleite que é trepar com uma mulher (muito) mais velha. Poderia citar dezenas de amigos que – como diria Milton Leal – comeram até o caroço desta fruta madura.

É sempre por acaso. Não pense você que um moleque vai parar numa cama (já) estreada de modo pensado. Dirá Márcio Lacerda, “eu vou”. Acalme-se Marcinho, você é exceção. Mas voltemos. A cena típica é: chegamos ao bar, bebemos, nos perdemos dos amigos, bebemos, frustramo-nos com alguma Chris, Bia ou Gabi de vinte e poucos anos, bebemos; e por fim, estacionamos no balcão. Neste momento, não nos resta nenhuma pretensão e aguardamos pura e simplesmente a hora de fechar o recinto. O trabalho está feito.

E então, é aí que a Milf aparece – turva e intensa como a nossa míope visão etílica do momento. Ainda desapontados pelas tentativas anteriores arriscamos um último tiro; um suspiro. Apenas uma deixa. Atiramos a ultima flecha no peito exposto; e acertamos. Acabamos recepcionados peito a peito com um papo adulto, sincero e carinhoso. Quando saímos do bar – após o mútuo consentimento acerca do convite de ir até a casa mais próxima – avistamos o possante e engatamos o passo até o relento da paixão.

Quando é chegada a hora, desde as preliminares o rapaz se surpreende; para bem. Ele usa e abusa das novas posições, faz pedidos a ela – que os realiza sem pensar duas vezes – e se sente até abraçado. Com amor, mas sem pudor. Ele é o arroz branco que se solta. Ela é a panela. Após a idílica experiência, ele volta para casa são e salvo – mais salvo do que são – e com a cabeça no travesseiro, dorme e sonha com a coroa.

O menino acorda no outro dia com paz de espírito. Toma um sagaz café da manhã e vai à faculdade de peito aberto, ansioso para contar aos mais chegados o benefício da troca noturna. Foram-se os problemas. Como lembra o cronista Xico Sá, só se cura um amor platônico com uma trepada homérica.

Sabe-se lá que arroz branco foi Sérgio Reis em outras vidas ou a idade da panela que ele usava; só vale dizer: “panela velha é que faz comida boa”.

Sobre nós


Brigamos por migalhas
fazemos sujeira
vamos à igreja 

Não somos 
outra coisa 
senão 
pombos

Orquídea


Peso a peso
Meço os poréns
- Uma noite mal dormida
Um domingo de azia -

Na balança que me fita
Um relatório se segue
Nele estão contidas
Coisas como dinheiro
Saúde ou companhia

Num próximo momento
Desprovido de qualquer ocupação
Uma senhora me assalta o tempo
Dissertando sobre a saudade
E o porquê dos nomes das ruas

A senhora já não nota
Mas há tempos não respira
Trocou sua veia viva
Pelo caule da orquídea
Que lhe colore a face
Com o reflexo das pétalas

Elegia

Descobrir o verdadeiro sentido das coisas é querer saber demais. Indagamos a razão de uma simples travessia em decorrência de uma confusão entre os limites de inicio, meio e fim. Trocamos a tristeza pela saudade e a aceitação pela conformidade. Ora, uma travessia pode ser feita por pernas ou pneus! E por que não asas? Asas de anjos.


Temos a mania de tomar para si toda indireta que aparece pela frente quando algo não está claro. Como quem coleta pistas pra entender o passado ou descobrir o futuro. Como se não houvesse verso de amor, frase de liberdade ou música de saudade que não fosse feita especialmente para (re)afirmar a (in)certeza do tempo de agora. Vivemos em busca da epifania.


É preciso aceitar com serenidade, sem a súbita necessidade de encontrar explicações para cada ato, cada fato. Nossa alma não obedece às leis da física. Milênios se passaram sem que cientistas apresentassem qualquer prova concreta acerca da existência de Deus. Impérios foram derrubados sem que alquimistas pudessem nos mostrar biologicamente como funciona o amor; e ainda assim acreditamos – e tanto Deus, como o amor, são às vezes plausíveis para todos nós. Por isso, não contamos com a capacidade de atribuir à morte, sua própria posição. Não foi o fim, nem para Rafael, nem para Carolina – e para nós, quem sabe seja apenas o inicio. Afinal, não estamos todos encaminhados?


Carol concordaria – balançaria discretamente com a cabeça dizendo que sim e voltaria sua atenção para o próximo capítulo do livro. E quem seria o Rafinha pra discordar? Ele que exalava amor do corredor à cozinha? Ele que de anjo, levou até o nome? Como bem lembra Aline, estamos todos encaminhados.


Não vou insistir no clichê de que há males que vem para o bem – porque o mesmo não cabe no contexto. O que vem ao caso são as lições de que todos nós temos a capacidade de absorver. O que vem ao caso é o nosso potencial de não repetir os velhos erros.


Recusamos facilmente um convite de aniversário em troca daquela reunião inadiável. Fugimos do almoço de domingo e seguimos para a churrascaria com os colegas. Erramos. Tal erro só se torna perceptível quando tomamos ciência de que alguém próximo faleceu. E então abandonamos o trabalho, a faculdade e a cidade, rumando míopes até o apoio mais próximo; até a escora familiar. E para quê? Para ver o corpo. O mesmo corpo do qual tivemos infinitas oportunidades de abraçar nos almoços de domingo. Trocamos a alma, pela matéria. Erramos.


Todos nós guardamos uma boa lembrança. Um Jipe, um chocolate ou um pôr-do-sol – daqueles que a gente só via nos acampamentos em família. Estrelas não faltam em nossas vidas. Duas luzes surgiram através da linha mais reta, obedecendo, pura e simplesmente, às leis divinas e naturais. Obedecendo a seu próprio tempo; seu tempo de anjo. Descobrir o verdadeiro sentido das coisas é querer saber demais.

Carta para um anjo

Caro Rafa,

Mas que atalho inconveniente foste atravessar. Logo você. Logo você que dormia em montanhas, morava num jipe e rapelava paredões de pedra. Logo você que me ensinou a dirigir. Lembra? A praia de Ubatumirim era deserta, a cerveja era gelada e o carro não chegou a morrer, ainda que fosse de areia o que sustentava nossos pneus. Fazia sol. Sempre fez sol quando estávamos juntos. Mal sabe o sol que perderia para você o posto de estrela-maior. Ah, o sol! Este mesmo já não faz mais sentido e eu até já mandei desenharem no horizonte outro astro, outra luz, com outro nome. Acredite Rafa; eu fiz isso. E sabe por quê? Porque o sol não pode mais se pôr sem sua principal platéia; sem eu e você, juntos. Lembra de quando assistíamos de camarote ao pôr-do-sol? Lembra Rafa? Economizávamos no café, poupávamos na cerveja e comprávamos vinho barato a fim de abastecer o tanque do Jipe; abastecer o tanque e a alma, o bastante para encontrar o horizonte e a paz de espírito. Mas que ironia, Rafa; que ironia. Que ironia você se pôr em minha vida; como uma estrela que desaparece na linha mais reta, obedecendo, pura e simplesmente, às leis divinas e naturais. Obedecendo a seu próprio tempo; seu tempo de anjo. Está escuro, Rafa. Estou escuro. É um negro triste, que não é de treva, mas de saudade. Você apagou a luz da minha vida; como um irmão mais velho apaga a luz do quarto num sutil toque no abajur; e sai, pé ante pé, pela fresta mais próxima, a fim de proteger o sono do outro; o sonho do outro. Mas eu, Rafa, eu que sou seu irmão mais novo, não posso dormir, tampouco sonhar. Insônia e pesadelo se misturam no cômodo do meu peito; no quarto da minha saudade. E eu não descanso, Rafa. Eu não vou sossegar até que veja uma nova estrela acima da minha cabeça. Porque você, meu irmão, ainda é mais importante do que qualquer Ursa maior, Cruzeiro do sul, ou qualquer outra constelação bocó. Porque da luz você vieste, caro Rafa, e não é outra coisa senão estrela. Tenho hoje meu próprio universo. Minha vida sem você é um universo, primo. E sabe por quê? Porque tenho no presente e no meu peito mil-e-um lugares inabitados e o que eu conheço ainda é muito pouco. Sabem-se lá quantas galáxias habitam em nossos corações, meu amigo. Mas deixemos a metafísica. Não somos bons com ela. Conte-me do paraíso. Como é tudo aí em cima? Pode-se beber cervejas de trigo como aquelas que tomávamos nos empórios? Aguardo resposta. Lembre-se que isso é uma carta, uma correspondência, e a mesma não faz qualquer sentido se não houver resposta. Não é porque você é um anjo que devo dirigir-me a ti em forma de oração. Não é, Rafa. Falando em anjos, sabe que hoje a existência deles se tornou plausível para mim? Anjos mesmo, primo. Daqueles de cabelos loiros e olhos claros, assim como você. O que disseram aí em cima do teu histórico? O que disseram de mim? Eu que ficava sempre puto com a vida, Rafa. Eu que ficava sempre puto com teu atraso. Eu que – REPITO – ficava sempre PUTO quando perdia a chave do carro, a carteira ou o celular. Eu que agora perdi você. De nada adianta as pequenas coisas, Rafa. É tudo supérfluo. Não me importo com mais nada, que não o sangue que corre em minhas veias. O mesmo sangue teu. A muralha do meu ceticismo contrasta hoje com a esperança da vida eterna. Falo sobre a eternidade da sua vida, não da minha. Eu não teria saco, pretensão ou paciência de anjo para viver eternamente. Não rezei direito ainda. Sou gauche em orações. Preciso mesmo rezar por você? O bom senso me diz que deveria ser ao contrário. Aproveitando o ensejo, peço para que reze por mim. Reze, Rafa; porque eu preciso. Ainda lembra-se das minhas queixas, primo? A porra do meu trabalho, a mesquinhez da minha faculdade e meus amores mal-sucedidos? Breathe in the air. Vou escutar nossas músicas, quem sabe passe. Vou ouvir Pink Floyd. By the way... Gostou da música que toquei pra ti hoje? Os acordes de “Mother” acompanharam liricamente os centímetros do seu túmulo; e eu me senti vivo. Foi uma linda cerimônia, não?  Não sei como é seu tempo aí no céu. Vou me despedindo e aguardo respostas – positivas. Que você continue a ser minha luz: o abajur do meu quarto, o farol do meu barco ou o sol do meu horizonte. Um grande abraço “peteteco”. “Alu Mará” e bom futuro!
“Shine on you crazy diamond!”

Gustavo Faria.          
5 de Setembro de 2011.

Lasca

Talho o peito
Com o acaso

Uma lâmina
De pesares
Que equipara
O passado
E o presente
N’um nível
Epífano

Como um gás
Resido
Aleatoriamente
No espaço
Reticente
D’um caminho
Misantropo

Dissipo
No peito que
Tampouco pára
– mas sopra –
Sobrestando
Estático

Do outro lado

Um dia com os detentos da APAC.


- Onde mora? Te conheço de vista faz tempo. - Disse-me um rapaz nesta manhã de sexta-feira. Quando o fitei também o reconheci e justamente pela localidade interrogada; ele estava certo. Tempos atrás éramos vizinhos. Eu havia acordado cedo com o telefonema da escrivã da 2ª vara cível pedindo para que me dirigisse até o velho arquivo do Fórum. Fui, e quando dei conta, me vi no meio de uma mudança.


A cidade de Pouso Alegre/MG recentemente ganhou um novo local para o exercício dos tradicionais atos jurídicos. Após uma obra no valor de R$ 1.151.464,40, o Fórum Orvieto Butti atua desde 27 de Junho sob novas instalações. O precário – e antigo – edifício situado no centro da cidade, hoje é tombado como patrimônio histórico e até esta semana abrigava os processos arquivados. A mudança foi motivo de grande divergência na cidade. Mesmo com instalações melhores – nas quais se pode contar com elevador, copa e estacionamento – a novidade criou “razões” para que muitas pessoas torcessem o nariz. O principal motivo se deu pela distância, em virtude do – não tão longo – perímetro territorial de Pouso Alegre. O novo endereço dos atos processuais se encontra acerca de 10 a 15 minutos do centro da pequena cidade.
Ocorre que, em razão desta transição, se fez necessário que alguém movesse os processos do velho para o novo arquivo. Tal função foi atribuída a mim – estagiário – e aos detentos da APAC.


APAC é o mesmo que Associação de Proteção e Assistência aos Condenados. Enquanto projeto, acompanhado pela justiça, pode-se afirmar que tal instituição se funda em sucesso e tem total credibilidade ante os membros do judiciário pouso alegrense. Os hábitos e costumes da casa são bem diferentes daqueles vistos corriqueiramente no presídio. Os presos definem sua rotina no projeto como “suave”. Não há brigas por lá e eles se encontram passíveis de falta freqüentemente. Quando quis saber sobre as condições do presídio (outro lado da moeda), recebi um: “é foda”. A superlotação é o maior problema e a ausência de normas para regular a conduta dos detentos faz com que surja a velha guerra de todos contra todos. N’um espaço sem regras, sobrevive o mais forte. Na cadeia é assim.


O rapaz que citei no início do texto é Luan – detento que cumpre pena por meio da APAC. Ele paga cinco anos obedecendo aos ditames da lei 11.343/2006. “A casa é o nosso meio de fumar um cigarrinho e tomar cafezinho enquanto estamos na rua labutando. São três (anos) por um. Pra gente que vive preso, é a solução.” – afirma ele. Na APAC, Luan até aprendeu a fazer pão – que é vendido toda tarde a fim de sustentar o café vespertino dos funcionários. “Profissão ao sair daqui, eu já tenho.” Afirma ele, confiante.


O encargo do qual nos ocupava resumia-se em transportar as caixas de arquivo – soma de processos que não se encontram mais ativos - do segundo piso do prédio até o caminhão, por meio de uma rampa de madeira. Mil e duzentas caixas. Quantidade suficiente para gerar tempo a fim de proporcionar nova troca de experiências com os detentos. O trabalho entre nós era exatamente o mesmo: o primeiro pegava a caixa, arremessava para o segundo, e este jogava para o terceiro, que organizaria em fileiras todas elas. Ao longo do trabalho tive a oportunidade de interrogar displicentemente quase todos eles.


O segundo foi Armando – mineiro de trinta e quatro anos, com esposa e filho. Mora(va) no Chaves - bairro rural do município. Armando foi condenado a 26 anos de regime fechado. Quando pergunto o motivo da condenação, recebo dele, na ponta da língua: “157 com 121”. É mais do que certo que detento no Brasil conhece mais de lei penal do que qualquer estagiário do Direito. O artigo 157 do C.P diz respeito ao furto. Armando responde pelo respectivo crime, acrescentada a pena qualificadora do parágrafo 2º, inciso I do Código penal; resumindo: assalto a mão armada. O homem nega de pé junto que cometera tal ato. Naquele tempo, a delegacia de Brasília recebera uma denúncia anônima na qual seu nome se encontrava. Um ônibus que vinha do Paraguai havia sido saqueado por bandidos armados; o mentor seria ele. Armando – já adulto – assumiu a relação com tal gangue, mas negou a prática do ato infracional. Disse que não foi reconhecido pelas pessoas que assinaram a lista de testemunhas. Não duvidei após ter aprendido que um detento não mente quando não possui mais nada a perder. O outro artigo de Armando foi o 121: homicídio. Quando perguntei o porquê do crime ele se politizou. “Assumi”, disse ele – e mais nada. Talvez tivesse sido um justo motivo.


Cheguei a conversar – ainda que distraidamente – com vários outros presos. A razão da reclusão era quase sempre a mesma: tráfico de drogas. Da marcha legalize vários motivos provém. Hoje a droga é um problema de segurança, enquanto deveria ocupar o cenário da saúde; tendo em vista que um problema de saúde é muito mais fácil de ser combatido pelo governo, pois não depende de bandidos, contando apenas com o bom senso da nossa – nada efetiva – política brasileira. De tão lembrado, tal argumento passou a clichê, mas não à mentira.

Enquanto descarregava, ao lado de meus atípicos colegas, o caminhão cheio de caixas ocupadas por mil-e-um processos correspondentes a conflitos da vida familiar, ouvi de Luan: “Daqui eu vejo minha casa, é logo ali. Fico tão puto. Tão perto e tão longe. Corro contra minhas pernas. Um e oito (anos), e já era.”

Oito horas de trabalho braçal e organizamos o arquivo da 2ª vara cível. Mil e duzentas caixas contendo dezenas de milhares de processos. Milhares vidas que se vão. Volto do Fórum pensativo. Recebi mais respeito dos detentos, do que dos advogados com quem convivo diariamente. Dividi coca-cola, gíria e espaço. Pela vida ou pela morte, por ódio ou por amor: errar é humano.

O homem down

N’um primeiro momento não conseguiu abrir os olhos – não sei se por inércia do sono ou pela remela concentrada na extremidade dos cílios. A boca carregava um amargo ressecado que o remetia a qualquer uma das doses que tragava repetidamente horas antes de dormir – Campari, talvez. Quando enfim constatou que ainda enxergava teve o impulso do despertar limitado por uma dor que subia da nuca até a cabeça. Não demorou para que o desconforto amanhecido fizesse com que carregasse o peso de todas as atitudes (des)cometidas que – supostamente – cometera; e digo “supostamente”, com tanto tino, pois não haveria neste mundo viv’alma que pudesse lembrar dos fatos passados em tais circunstâncias noturnas. O esquecimento é o pai do arrependimento. Foi do quarto ao banheiro sem sequer saber que horas eram; apenas com a esperança de que, quem sabe, tivesse acordado em outro corpo, outro plano. Falha. O espelho do banheiro lhe cuspia um reflexo de quem já muito fez e pouco aprendeu. O espelho é uma verdade inconveniente - tal como fotografia ou parente distante. Domingo. Em domingos de manhã só existem dois tipos de pessoas: aquelas que vão à missa e aquelas que não despertam. Concluiu que, pelo horário, ao mesmo tempo em que se olhava, qualquer gente daquela primeira classe de pessoas (lato sensu) estaria em cantos eucarísticos pedindo pela salvação de suas almas – ou da dele. Colocou qualquer roupa que suprisse o trajeto caseiro. Na cozinha, tentou água e coca. A água parecia clorada e a coca (cola) tinha gosto de rum. Na cabeça, tinha um pêndulo que lhe atrasava os sentidos de tal modo que não (ou)via muito bem qualquer som oportuno que fosse. Na sala, tentou televisão; e na TV não havia o que tentar. Caminhou até a varanda e de súbito teve a certeza de que não existe nesta vida habitat ideal para um pós-bêbado. Introspecção. A ressaca proporcionava-lhe a chance de filosofar sobre seus dias. Digo isto pois, o ofício de pensar não nos cabe na rotina, aparecendo apenas nesses dias em que tudo é nada. Tinha na barriga qualquer coisa que balançasse o que carregava por dentro dela. Um arroto quase jogou pra fora o pouco que tinha consigo. Tentou lembrar – em vão – do que pudesse ter ocorrido na madrugada anterior. Os ambientes não tinham cor, a música era uma só e qualquer mulher que fosse usava batom vermelho. Qualquer mulher. Nada (em) forma. Fora para a noite por não ter nada a perder - no dia. Voltou para o banheiro; quem sabe o espelho falasse. Do que conseguiu lembrar, não gostou. Foi o suficiente para que sua barriga cuspisse pra fora todo o pouco suprimento que tinha. Ajoelhou em frente ao vaso e deixou que o jato amargo refrescasse sua memória. Concluiu que, pelo horário, ao mesmo tempo, as pessoas que iam à missa devessem estar também ajoelhadas e dificilmente pediam tanto por salvação quanto o pobre impotente. “O banheiro é a igreja de todos os bêbados”, dizia a música. Ajoelhadas, as pessoas não mais se dividiam. Amores mal-sucedidos, amizades esquecidas e falta de dinheiro. Não havia outro remédio. “Que atire a primeira pedra”, cuspiu ele um pouco rouco.

Até o fim

Do alto do meu ócio
Brasileiro e preguiçoso
Procrastino o afazer
Do amanhã ao feriado

Regado a sauvignon
Cantando din don don
Caminho pela calle
Feito um gauche bon vivant.

Un coche em Chacabuco
Uma dose na Augusta
Rumo à Copacabana
Coisa que muito me gusta

Paro hoje em cada esquina
Diante de toda vista
Meu futuro é reticente
Meu presente amanheceu

Deus sabe o quanto andei
Na fartura do pecado
Pois bato no peito e digo

- Como é bom viver errado.

Noite adentro

Da varanda do oitavo andar reparo que lá embaixo um porteiro ensaia suas próprias conclusões sob a sombra desta indiferente madrugada de outono. Não que me falte assunto para escrever, mas agora este porteiro é o que me fita de mais humano em minha frente – ainda que em minha frente eu possa ver centenas de telhados, transeuntes e antenas também indiferentes e também sob a mesma madrugada de outono. Ocorre que Severino – sabe-se lá se lhe é este mesmo o nome dado de nascença, mas lhe cabe bem em razão da função – pois, acontece que, este Severino ali embaixo se passa tão despercebido pelos pára-brisas e cortinas que lhe atravessam que sua personalidade daqui já não se fundamenta em outra coisa, senão no bom senso de quem um dia já desprezou ou provou de algum desdenho. Percebe-se que sua rotina não se baseia em outra coisa que não em feições providas de caridades e insatisfações.

Vejo que ele cruza as pernas e encosta-se à coluna do muro – atitude de quem pensa, pois não lhe cabe agora outro ofício em razão das condições de tempo e espaço – e assim, não lhe cabendo mais nada no momento além de vigiar sua pobre alma, filosofa sobre o prazer de haver sido. O momento de introspecção de Severino registra sua vingança frente à indiferença de quem vive no posto da cabine insufilmada de um edifício urbano.

Enquanto termino daqui de cima meu preguiçoso copo d’água noto que Severino também carrega uma bebida em mãos. Os mais distraídos diriam que ele agora poderia estar bebendo qualquer coisa, mas o raciocínio lógico a que o ócio me submete sugere que Severino está bebendo café. Pois, se existe nesse mundo algo sugestivo para um vigia – e filósofo – carregar em mãos numa madrugada silenciosa, cotidiana e sem novidades, é uma boa dose de cafeína.

Percebo que nosso humilde porteiro cruza agora os braços e sai em passos lentos no perímetro do portão. É bem certo que não possui ao alcance outra arma que não seja o interfone – o que atribui ao nosso personagem um tino – até – de corajoso. Mas voltemos ao prazer de haver sido (pois não me resta agora outros traços cabíveis ao caráter deste empregado padrão e as descrições pessoais aqui se encontram um tanto extensas).

Na companhia de uivos perdidos pensa ele agora – o que haveria de ter sido? – E penso eu: há sempre um dia em que somos obrigados a indagar o progresso. E então pensa ele agora que trabalha com portões dia e noite esperando o instante de vencer o humor do síndico. Pensa ele agora que abre e fecha garagens aguardando a recompensa da maleta encontrada cheia de títulos e notas que pertencia ao empresário da cobertura. Pensa ele agora que carrega o fardo de ter hábitos forçados em benefício de sono alheio. Pensa ele agora sem raciocinar.
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Uma luz que se apagou no prédio da frente fez com que eu desviasse o olhar e perdesse Severino de vista. Atentei-me para a cabine escura da portaria e não enxerguei seu vulto. Percorri o olhar sobre os blocos do condomínio e segui sem notícias de nosso vigilante noturno.

Sento na poltrona da varanda, abro um livro e leio: “Outra vida, da cidade que anoitece. Outra alma a de quem olha a noite. Sigo incerto e alegórico. Sou como uma história que alguém houvesse contado.”

Que tenho eu com a vida?


O homem que marcava passos

Acordou com o pé direito - não em razão de alguma sorte ou bom humor inerente a todos os varões de vinte anos - acordou com o pé direito porque lhe fazia bem a simetria do ato. Foi ao banheiro, conferiu a posição dos frascos de perfume bem como da saboneteira, (re)posicionando os rótulos de modo que ficassem de costas para o espelho. Lavou o rosto abrindo a torneira direita da pia com cinco voltas ritimadas. Secou a face percorrendo o papel toalha da testa ao queixo. Foi até a cozinha em passos ímpares e fez o café das cinco xícaras. Esperara a água ferver escutando o som do rádio após arredondar o volume no display para a dezena mais próxima. Preparou torradas - cinco. Amanteigou-as de forma que anivelasse a superfície da manteiga. Odiava quem fazia crateras no alimento como se fosse a última coisa do último café do último minuto de uma vida. Quando o relógio marcou sete, saiu de casa conferindo três vezes a fechadura - não confiava em portas nem em vizinhos. No ponto de ônibus atentava-se à olheira da enfermeira e ao catarro do moleque que perguntava ao operário se a linha Industrial já havia passado. Subiu no coletivo pelo lado direito e pagou a quantia trocada ao cobrador. Não sentou. Preocupava-o a lotação e a falta de ar, de autonomia e de vida de todas aquelas pessoas que suavam em pleno turno matutino. Não era um deles (?). Desceu um ponto antes para não precisar dividir a divisória direita da porta do veículo. Gostava de caminhar pela manhã reparando nas olheiras das calçadas e nos passos largos dos funcionários uniformizados. Confortava-lhe caminhar no centro - exceto pelas ciganas. Odiava ciganas. Filosofava sobre a vida embaixo daqueles acampamentos sem banheiro e acreditava que receberia uma praga flamenca caso oferecesse a mão para alguma daquelas perdidas. Não tinha pena das crianças sujas de colo. Odiava Ciganas. Conferiu a hora no relógio de pulso para que chegasse a tempo no estudo sem precisar dos cinco minutos de tolerância tão cultivados no cotidiano rotineiro de brasileiro. Não era um deles (?). Talvez realmente não fosse. Sentia pena da mediocridade daqueles que atribuíam todos os problemas da vida a um espaço encontrado entre o intervalo de "ter" e "ser". Pensava: "As pessoas que são, acreditam que sendo, tudo estará resolvido". Arre! Talvez tivesse razão. Existem verbos mais interessantes para se obedecer - como o próprio verbo obedecer. Ou talvez obedecesse a tantos rituais simplesmente para provar a (des)necessidade de obedecer a qualquer coisa. Era um hedonista. Apenas isso. Lembrou-se da última transa e de como sempre tirava o sutiã da amante antes da calcinha, calculando para que fosse um número ímpar a última penetração na genitália feminina.  Agradava-lhe a quantidade do som, a manteiga nivelada e os passos simétricos. Sentia prazer na medida dos atos em meio à sua rotina. Talvez não fosse um transtorno e sim uma solução. Uma solução para a demagogia dos discursos dos colegas de trabalho, dos almoços de domingo e dos padres da paróquia.

Às exatas vinte e duas horas dormiu e sonhou.

O conto da descabida

Foi até a cozinha, olhou pela janela e concluiu que em mais ou menos tempo ia chover. Nublou-se de outras conclusões abafadas pela necessidade de tirar as roupas do varal antes que o dilúvio imaginário molhasse todos os seus afazeres de coroa do interior. O quintal era seu escritório de dona de casa, seu marca ponto rotineiro. Passara dos quarenta com casa, filho, marido e cabelo curto. As dezoito horas do relógio remetiam-na ao estudo do moleque, ao atraso do marido e aos desfalques de seu tempo. Saiu da cozinha odiando o quintal, o esposo e o varal. As varizes distanciavam suas pernas dos lençóis molhados de fora. Esqueceu das obrigações diárias de esposa quando passou pelo espelho da sala. Em meio ao seu reflexo e às gotas de suor concluiu que o padrão não é mérito nenhum pra quem vê a vida de fora. Rugas de insegurança ao lado de contas não pagas, menstruações atrasadas e louças não lavadas. Adiou vitrines, pileques e sextas-feiras. Tantos atrasos por tão pouca bobagem.  "Antes fosse puta" - pensou ela. Antes fosse puta.

Da mudança

Tempo de mudança é quando o conforto dos velhos cômodos dá lugar ao tédio. Sei que meu status de ocioso não me dá créditos para conclusões do tipo, mas essa casa já teve lá sua graça. Posso me lembrar de como foi dinâmica durante a minha infância. Recordo-me de como era prazeroso descobrir uma gaveta de fotografias em preto e branco, uma porta falsa com vinis ou revistas antigas no alto do guarda roupa à medida que os anos me concediam os generosos centímetros. Mas as paredes da minha casa não (mais) falam. Ainda que todas as paredes falassem – repito – ainda que todas as paredes feitas de tijolo, cimento e massa corrida pudessem falar – as da minha casa continuariam (hoje) mudas.

Não há mais no meu quarto o suspense dos espíritos dentre os cabides, tampouco os mistérios inerentes aos olhares dos porta-retratos; e o velho criado-mudo de madeira maciça do interior – que há tanto tempo sustentou sobre si as palavras inquietas dos romances que ali ficavam – sustenta hoje apenas mil e duzentos gramas de papel impresso nos livros de cabeceira. Hoje minha cama é uma cama; não mais um abrigo.

Os anos não são generosos com o encantamento humano. Enjoamo-nos com facilidade das pessoas, dos lugares, e a distância se faz necessária para que ocorra um (re)encontro espirituoso.

Tempo de mudança é quando o conforto dá lugar ao tédio. Vou me mudar.