Elegia

Descobrir o verdadeiro sentido das coisas é querer saber demais. Indagamos a razão de uma simples travessia em decorrência de uma confusão entre os limites de inicio, meio e fim. Trocamos a tristeza pela saudade e a aceitação pela conformidade. Ora, uma travessia pode ser feita por pernas ou pneus! E por que não asas? Asas de anjos.


Temos a mania de tomar para si toda indireta que aparece pela frente quando algo não está claro. Como quem coleta pistas pra entender o passado ou descobrir o futuro. Como se não houvesse verso de amor, frase de liberdade ou música de saudade que não fosse feita especialmente para (re)afirmar a (in)certeza do tempo de agora. Vivemos em busca da epifania.


É preciso aceitar com serenidade, sem a súbita necessidade de encontrar explicações para cada ato, cada fato. Nossa alma não obedece às leis da física. Milênios se passaram sem que cientistas apresentassem qualquer prova concreta acerca da existência de Deus. Impérios foram derrubados sem que alquimistas pudessem nos mostrar biologicamente como funciona o amor; e ainda assim acreditamos – e tanto Deus, como o amor, são às vezes plausíveis para todos nós. Por isso, não contamos com a capacidade de atribuir à morte, sua própria posição. Não foi o fim, nem para Rafael, nem para Carolina – e para nós, quem sabe seja apenas o inicio. Afinal, não estamos todos encaminhados?


Carol concordaria – balançaria discretamente com a cabeça dizendo que sim e voltaria sua atenção para o próximo capítulo do livro. E quem seria o Rafinha pra discordar? Ele que exalava amor do corredor à cozinha? Ele que de anjo, levou até o nome? Como bem lembra Aline, estamos todos encaminhados.


Não vou insistir no clichê de que há males que vem para o bem – porque o mesmo não cabe no contexto. O que vem ao caso são as lições de que todos nós temos a capacidade de absorver. O que vem ao caso é o nosso potencial de não repetir os velhos erros.


Recusamos facilmente um convite de aniversário em troca daquela reunião inadiável. Fugimos do almoço de domingo e seguimos para a churrascaria com os colegas. Erramos. Tal erro só se torna perceptível quando tomamos ciência de que alguém próximo faleceu. E então abandonamos o trabalho, a faculdade e a cidade, rumando míopes até o apoio mais próximo; até a escora familiar. E para quê? Para ver o corpo. O mesmo corpo do qual tivemos infinitas oportunidades de abraçar nos almoços de domingo. Trocamos a alma, pela matéria. Erramos.


Todos nós guardamos uma boa lembrança. Um Jipe, um chocolate ou um pôr-do-sol – daqueles que a gente só via nos acampamentos em família. Estrelas não faltam em nossas vidas. Duas luzes surgiram através da linha mais reta, obedecendo, pura e simplesmente, às leis divinas e naturais. Obedecendo a seu próprio tempo; seu tempo de anjo. Descobrir o verdadeiro sentido das coisas é querer saber demais.

Carta para um anjo

Caro Rafa,

Mas que atalho inconveniente foste atravessar. Logo você. Logo você que dormia em montanhas, morava num jipe e rapelava paredões de pedra. Logo você que me ensinou a dirigir. Lembra? A praia de Ubatumirim era deserta, a cerveja era gelada e o carro não chegou a morrer, ainda que fosse de areia o que sustentava nossos pneus. Fazia sol. Sempre fez sol quando estávamos juntos. Mal sabe o sol que perderia para você o posto de estrela-maior. Ah, o sol! Este mesmo já não faz mais sentido e eu até já mandei desenharem no horizonte outro astro, outra luz, com outro nome. Acredite Rafa; eu fiz isso. E sabe por quê? Porque o sol não pode mais se pôr sem sua principal platéia; sem eu e você, juntos. Lembra de quando assistíamos de camarote ao pôr-do-sol? Lembra Rafa? Economizávamos no café, poupávamos na cerveja e comprávamos vinho barato a fim de abastecer o tanque do Jipe; abastecer o tanque e a alma, o bastante para encontrar o horizonte e a paz de espírito. Mas que ironia, Rafa; que ironia. Que ironia você se pôr em minha vida; como uma estrela que desaparece na linha mais reta, obedecendo, pura e simplesmente, às leis divinas e naturais. Obedecendo a seu próprio tempo; seu tempo de anjo. Está escuro, Rafa. Estou escuro. É um negro triste, que não é de treva, mas de saudade. Você apagou a luz da minha vida; como um irmão mais velho apaga a luz do quarto num sutil toque no abajur; e sai, pé ante pé, pela fresta mais próxima, a fim de proteger o sono do outro; o sonho do outro. Mas eu, Rafa, eu que sou seu irmão mais novo, não posso dormir, tampouco sonhar. Insônia e pesadelo se misturam no cômodo do meu peito; no quarto da minha saudade. E eu não descanso, Rafa. Eu não vou sossegar até que veja uma nova estrela acima da minha cabeça. Porque você, meu irmão, ainda é mais importante do que qualquer Ursa maior, Cruzeiro do sul, ou qualquer outra constelação bocó. Porque da luz você vieste, caro Rafa, e não é outra coisa senão estrela. Tenho hoje meu próprio universo. Minha vida sem você é um universo, primo. E sabe por quê? Porque tenho no presente e no meu peito mil-e-um lugares inabitados e o que eu conheço ainda é muito pouco. Sabem-se lá quantas galáxias habitam em nossos corações, meu amigo. Mas deixemos a metafísica. Não somos bons com ela. Conte-me do paraíso. Como é tudo aí em cima? Pode-se beber cervejas de trigo como aquelas que tomávamos nos empórios? Aguardo resposta. Lembre-se que isso é uma carta, uma correspondência, e a mesma não faz qualquer sentido se não houver resposta. Não é porque você é um anjo que devo dirigir-me a ti em forma de oração. Não é, Rafa. Falando em anjos, sabe que hoje a existência deles se tornou plausível para mim? Anjos mesmo, primo. Daqueles de cabelos loiros e olhos claros, assim como você. O que disseram aí em cima do teu histórico? O que disseram de mim? Eu que ficava sempre puto com a vida, Rafa. Eu que ficava sempre puto com teu atraso. Eu que – REPITO – ficava sempre PUTO quando perdia a chave do carro, a carteira ou o celular. Eu que agora perdi você. De nada adianta as pequenas coisas, Rafa. É tudo supérfluo. Não me importo com mais nada, que não o sangue que corre em minhas veias. O mesmo sangue teu. A muralha do meu ceticismo contrasta hoje com a esperança da vida eterna. Falo sobre a eternidade da sua vida, não da minha. Eu não teria saco, pretensão ou paciência de anjo para viver eternamente. Não rezei direito ainda. Sou gauche em orações. Preciso mesmo rezar por você? O bom senso me diz que deveria ser ao contrário. Aproveitando o ensejo, peço para que reze por mim. Reze, Rafa; porque eu preciso. Ainda lembra-se das minhas queixas, primo? A porra do meu trabalho, a mesquinhez da minha faculdade e meus amores mal-sucedidos? Breathe in the air. Vou escutar nossas músicas, quem sabe passe. Vou ouvir Pink Floyd. By the way... Gostou da música que toquei pra ti hoje? Os acordes de “Mother” acompanharam liricamente os centímetros do seu túmulo; e eu me senti vivo. Foi uma linda cerimônia, não?  Não sei como é seu tempo aí no céu. Vou me despedindo e aguardo respostas – positivas. Que você continue a ser minha luz: o abajur do meu quarto, o farol do meu barco ou o sol do meu horizonte. Um grande abraço “peteteco”. “Alu Mará” e bom futuro!
“Shine on you crazy diamond!”

Gustavo Faria.          
5 de Setembro de 2011.