Asilo


O enfermeiro caminhou pelo salão do asilo até chegar ao quarto de repouso. Percebeu no canto do cômodo uma velha cabisbaixa.
Sugeriu:
– A senhora deseja dar uma volta?
– Acha mesmo que tenho condições para isso?
– Vamos, te faço companhia.
– Você fala como se ignorasse a minha cadeira de rodas.
– E a senhora ignora o dia lindo que está lá fora.
– Bem vindo à vida, enfermeiro! Este jogo de ignorâncias rechaçadas. Há outra saída senão ignorar as coisas alheias? Não me recrimine, bípede de família e lar próprio! Respeite ao menos o meu pedido de estar em paz. Ignore-me você também, não deve ser tão difícil. Pergunte ao meu ex-marido como fazer. Ele, que me abandonara em tempos de necessidade, fazendo com que eu caísse em prantos, preocupada em esquentar-me sob os lençóis cremados. Procure minha filha e diga que, como ela, você também deseja me ignorar. Aquela ingrata deve se lembrar de como fugiu de casa, após conhecer um engenheiro da capital. A cada vez que você chega, moço, torço para que não me olhe com essa cara de piedade. Me dá vontade de cuspir-lhe à face. Finja, pelo menos, que não sou uma coitada. Faça parecer com que eu me sinta forte – como se tivesse ainda duas pernas e não me molhasse as calças. Meus ossos gemem, choram – e quem me dera chorar também! Nada mais me surpreende, rapaz. Sei dos dias em que haverá chuva e também daqueles ensolarados – como o de hoje, que você julga ser lindo. Colo o rosto à janela e observo: como são previsíveis os seres humanos! Sinto falta de quando a vida continha novidades. Tudo aqui é cinza e frio. Uma caixa de corpos fracos e pegajosos, aguardando que os ponteiros do relógio sentenciem a esperada hora. Tempestade de areia em ampulheta. E lá vou eu ser ignorada de novo – por uma amiga que morre ao lado com derrame cerebral, ou por outra, à minha direita, que me pergunta o nome a cada surto de Alzheimer. O asilo é um misto de vasculares entupidos e corações sôfregos; um labirinto em linha reta, onde se conhece a saída, mas não consegue alcança-la. E então, como se não bastasse esse dilúvio de pesares, me vêm ainda uma porção de fiéis aos pés da cadeira de rodas. Fanáticos perdidos, que rezam, choram e prometem-me vida eterna. Arre! E eu lá quero viver para sempre? Desejo morrer como uma chama que se apaga, como um vidro que se estilhaça – sem qualquer esperança de reconstituição. Quero descansar. Reze por mim, enfermeiro, e ignore a minha existência. 


Segundas revelações


- Qual o nome da Senhora?
- Estou tentando descobrir faz tempo.
- Como assim, não sabe o seu nome?
- Preciso escolher um especial. Afinal, nome é coisa nossa.

A velha afirmou certeira, num petardo de sabedoria. Da maneira como foi solta, a frase não aceitaria contestações. Concordei com ela e apresentei-me com meu nome. Em seguida, uma enfermeira aproximou-se de mim e esclareceu a problemática: a senhora tinha Alzheimer. Na vida fora do asilo, havia sido professora.

Insisti em conversar:
- A senhora era professora de quê?
- Ah, meu filho! Não vamos falar de mim...
Concluiu num tom triste, melancólico. Decidi não prolongar o papo.

Foi o primeiro diálogo metafísico (de muitos) que tive no dia de ontem. O asilo é como uma grande corda estendida, prestes a arrebentar. E, vai por mim, essa corda te dá um nó na garganta.

Cheguei lá com um grupo de mais ou menos quinze pessoas. Todos com a cara pintada, bexigas e perucas; inclusive eu. A cena da entrada parecia-se com aniversário de criança. Todo mundo batendo palmas, anunciando a chegada de gente querendo passar alguma mensagem positiva num contexto que não abre (muita) margem para tanto. Já tinha participado de outras visitas com esse pessoal. Muda-se o asilo e o orfanato, mas não a surpresa. Gente carente que te olha com jeito estranho, indagando o porquê de existirem pessoas afim de trocar a cerveja do sábado à tarde pela companhia de um abandonado. Há exceções.

O segundo ancião com quem conversei tem um nome que me agradou. Nutri por ele um afeto especial. É um velho ranzinza, sarcástico, desiludido. Daqueles que falam palavrão e não ignoram a condição solitária de quem está no asilo. Sem demagogia. Gosto disso. Estava amarrado na cadeira de rodas – amarrado mesmo – não procurei saber o motivo. Olhou para mim como se não visse graça no meu rosto pintado de palhaço. Uma enfermeira se aproximou e sugeriu uma foto nossa. Ele resmungou. Ela pediu pra fazer tchau. Eu fiz. Ele a mandou tomar no cu (com gestos). Pronto, foi o estopim. Pra mim bastou. Gostei daquilo. Já éramos quase amigos. Conversamos, e ele pediu uma Coca-Cola. Quando cheguei com o copo de refrigerante a enfermeira me alertou: cuidado, ele é bravo, pode cuspir tudo em você. Não cuspiu. Enquanto conversávamos, me chamava de jovem em tom bem jovial. Quando ficou sabendo que estavam distribuindo balas, o velhinho ficou doido, parecia criança! Comia bala e pedia mais. Missão cumprida; levei bom humor pra quem menos esperava. Era a hora de procurar um próximo.

Estávamos todos numa espécie de salão. Os velhos (a maioria sustentada por cadeira de rodas e com a saúde bem debilitada) estavam distribuídos ao longo de uma grande mesa. Fiquei meio perdido, como de costume, em encontrar alguém disponível para bater um bom papo. Olhava de um em um, reparando nas sondas, nos soros, nas rodas. Acenava compulsivamente esperando retorno. Seria demais exigir paciência de qualquer um deles. Imaginei-me em seus postos. Que conversar que nada, eu ia querer mesmo pedir um chope. Criei uma estratégia: “vou acenar para todos, quem corresponder, eu paro e converso”.

Deu certo! Um velhinho da voz baixa sorriu pra mim. Conversamos! Mas por que essa exclamação, me pergunta você. Conversamos sobre mulheres. Sim, o velho, no auge dos seus 83 anos, veio me falar de mulher. “No meu tempo, eu não perdoava nada, meu filho!”. Olha que coisa linda. Juventude é juventude. Ao seu lado estava um outro com a camisa do Palmeiras. Corintiano que sou, fiz piada. E não é que o velhinho ficou ofendido!

Permaneci com a tática do aceno correspondido. Troquei ideia com vários outros anciãos. Perguntei se gostavam do asilo, por que estavam lá, há quanto tempo. Uma velha me chamou de gostoso e tascou-me um beijo no rosto. Era daquelas bem humoradas. Também gostei daquilo. Com uma intensa naturalidade ia surgindo uma boa história atrás da outra. Curiosidades e detalhes com a importância de um segredo de Estado. Desde um Coronel aposentado que bebia vinho escondido no almoço até um senhor negro que cantava as modas de viola que tinha decorado. Este aí declamou “Reino Encantado”. Tinha uma gaita em mãos, e nos pulsos 3 (três!) relógios. Obviamente que perguntei: mas pra quê tantos? Respondeu, “ganhei, não tenho culpa que gostem de mim”. Os relógios estavam pontuais, tal como o velho, que tinha um bom humor de dar inveja a esquerdista radical.

O tempo foi passando e eu já não esperava mais nenhuma surpresa. A bem da verdade, preparava-me para despedir. Foi quando encontrei uma senhora de olhos azuis. Oitenta e sete anos (!), quase uma moça. Foi a melhor das conversas, e com quem dispendi o maior tempo. Era espírita. Filosofou sobre isso. O marido morrera e a irmã a abandonara. Mas seu bom humor era irredutível. Conversamos (e como!) sobre tudo. A pauta variava entre cinema e sexo (sim, sexo). “Vocês transam muito fácil!”, concluiu na primeira oportunidade. Ela decorou meu nome de imediato, gostei disso. A velha confidenciou que não via a hora de morrer, sonhava direto com a morte. Quando chegar a hora, disse que quer ser cremada. Acha um absurdo os filhos desrespeitarem esse desejo. Comentei com ela que em Pouso Alegre não há cremação. Despedi-me com muito pesar.

É gente que já viu de tudo. Que viu morte, que viu vida. Provaram da guerra, da censura, e até do aquecimento global. Podem concluir que Pelé foi melhor que Maradona; leram Nelson Rodrigues no jornal; viram Brasília ser construída. Não há surpresas para quem está no asilo. O tempo caleja o peito. Volto ao primeiro diálogo em que aquela senhora dizia não saber do seu próprio nome. Imagino que isso seja uma benção distraída. Um disfarce para a tristeza. Quanto vale sua identidade? Quanto vale esquecer-se dos teus pecados? O que fazer com os segredos da juventude? A vida é engraçada.

Fragmento de um Nirvana

(...)

TEO
O homem se revolta quando ferem sua ideologia.

GAIA
Não tem nada a ver com ideologia, Téo. Essa coisa de os homens procurarem dores e amores é uma necessidade fisiológica. Precisam disso para viver. Muita gente respira gritando. Um homem precisa sentir-se escudo e espada. O primeiro para tudo, o segundo para a amada. Podem até inverter o cosmos, cortar os fios que seguram os planetas, ou até chacoalhar nossas vidas com braços divinos; não importa, morreremos todos com as mesmas convicções, de cabeça para baixo. Irredutíveis – moralistas e irracionais! Nosso orgulho reprime a razão, Téo. Somos cegos falantes! O homem se vê no dever de fazer justiça na hora errada, cuspe no prato do bom senso. Se apressa para comer e queima a boca! A justiça perde o jogo da vida para si própria. O destino é um longo debate entre atos e fatos. Uma disputa de egos! Argumenta melhor aquele que espera o resultado. Nem tudo nessa vida é guerra, nem todo valor está na vitrine. Quanto vale tomar um tiro? O que uma causa precisa para ser nobre? Somos todos cegos falantes.

(...)

Nota de um coelho


Nem mensalão nem olimpíadas, a pauta da semana foi um concurso para escolher uma “Coelhinha” que representasse a identidade acadêmica de uma faculdade.
  
Deve estar se perguntando: mas qual a polêmica?

 Um grupo de alunos da faculdade associou a ideia do termo “Coelhinhas” (nome que compõe o título do concurso) àquela marca do velho playboy americano, Hugh Hefner. Tal associação, ao lado da hipótese do julgamento do Concurso basear-se em parâmetros de beleza, ensejou uma conclusão de que o respectivo evento se valia de um caráter machista, inserido num contexto de opressão contra uma minoria de alunas.
  
A conclusão deste grupo deu origem a uma NOTA DE REPÚDIO – sim, com todas estas letras: N-O-T-A-D-E-R-E-P-Ú-D-I-O.
  
Você me pergunta agora: por quê?

 O texto da nota justifica tal posicionamento dizendo que Concursos do tipo caminham para o retrocesso social, agindo em desconforme com o Estado Democrático de Direito e invadindo a integridade moral da mulher. Foram além, afirmando que a intenção do evento era COISIFICAR – oi? – o sexo feminino.

 Espere aí, mas o concurso era de beleza?

 Não. O Diretório Acadêmico não disse os termos do Concurso, tampouco os caracteres de julgamento do mesmo. Em nenhum momento o D.A afirmou que seria preciso beleza para que uma aluna ganhasse o Concurso.

 E por que “Coelhinha”?
  
Explico. A Mascote da Faculdade é um coelho – escolhido democraticamente pelos alunos, por meio de votação. O desenho do mesmo foi feito por um estudante da própria faculdade. Assim, o termo nada tem a ver com a marca Playboy.

 Mas, e se o Concurso fosse de beleza, ainda assim não poderia acontecer?

 Aos olhos da N-O-T-A-D-E-R-E-P-Ú-D-I-O, não. Os argumentos são aqueles mesmos.

 Claro que, se houve indignação de um lado, também houve de outro. A esmagadora maioria manifestou-se ela permanência do concurso. Não faz sentido que censurem a participação de uma aluna, sendo que esta age de plena vontade própria (olha o livre arbítrio aí!). Mas, ainda assim, falaram por ela.

Você se pergunta agora: mas não é muita tempestade em copo d’água?

É. Bom senso não vem de berço. Ao criar o Concurso, o D.A não imaginava que fosse preciso explicar o caráter de entretenimento do mesmo. Diversos eventos do tipo acontecem em inúmeras faculdades do país – e, cá entre nós, em muitos lugares fazem coisas piores (onde realmente deveria existir uma N-O-T-A-D-E-R-E-P-Ú-D-I-O).

E por que estou escrevendo isso?

Sou membro do D.A. E confesso: ninguém abriu a Constituição Federal de 1988 quando teve a ideia do concurso. O artigo 5º, supostamente violado pela ideia da eleição, possui um rol de incisos que eu estou tentando decorar já faz quatro anos! Sério, é muita coisa.

Nesse sentido, se – na absurda hipótese – as coelhinhas feriram a dignidade da mulher, o fez de maneira (muito) indireta.
  
E se formos falar em princípios, por que excluir o livre arbítrio? Se o concurso ofendeu aquelas que não participariam, a nota feriu em maior proporção àquelas que tinham interesse na eleição.

Gostaria de entender o teor deste moralismo, justo agora.

Faz 4 anos que estudo na Faculdade onde fizeram a nota. Já vi muita gente se aproveitando do Diretório Acadêmico; atuando na gestão com displicência e sumindo com dinheiro de repasse sem explicações. Nunca vi um membro do D.A, das gestões anteriores, entrar na sala de aula e mostrar prestação de contas, mostrar proposta realizada, mostrar trabalho feito. A maioria só sugou. E, contra isso, NUNCA ninguém fez nenhuma N-O-T-A-D-E-R-E-P-Ú-D-I-O.

E como anda a situação do D.A hoje?

Assumimos o Diretório com várias dívidas. Daria para escrever um romance. Houve gestão passada que foi condenada judicialmente, e nós pagamos parte da dívida. Houve membro egresso que fazia da sede uma verdadeira sacanagem. Houve muita coisa. Certa vez, fomos comprar bebidas num 24hrs para divulgar uma festa; o dono do bar abriu a gaveta e nos surpreendeu com uma dívida de R$1.000,00, oriunda de – adivinhem! – uma gestão passada. Pagamos todos os débitos. Pela primeira vez, em ANOS, o Diretório Acadêmico possui o nome LIMPO, limpinho da Silva! Sem falar nas propostas que conseguimos colocar em prática.

Eu sei que a nota não criticou a eficiência da nossa gestão, mas tão somente o concurso. O que deixei aqui teve o objetivo de esclarecer as coisas para ambos os lados. Nem a nota de repúdio, tampouco a presente crônica, objetiva alcançar alguma ofensa de cunho pessoal. Existem concepções distintas, que precisam ser debatidas. É o caso do machismo, estopim do debate, que como tudo ao redor, passou por um processo de banalização (ao lado de fotografias do Instagram e frases da Clarice Lispector).

Houve mesmo o machismo que afirmaram?

Mostre-me materialmente indícios de que o Concurso acarretaria em quaisquer das consequências alegadas, e vamos cancelar as eleições. Muita dor sem ferida, muito choro sem vela. Vejo a N-O-T-A-D-E-R-E-P-Ú-D-I-O como um instrumento de censura, desnecessário ao ambiente Acadêmico em que se situa. Quase uma medida KASSABIANA, querendo varrer das ruas o que não se situa no intervalo entre o Politicamente Correto e a moralidade absoluta. Ainda hão de proibir as conversas de boteco.

Espero que o bom senso esclareça as coisas, acalme os ânimos e desembace as lentes. Melhor é tomar uma cerveja, enquanto damos uma NOTA ao pior sorriso do Mister Universo e ao Tchau mais feio da Miss Brasil.
  
Entre o Politicamente correto e o incorreto, fico com o Politicamente saudável.


Primeiro retrato da loucura


Se move desatento, relaxado; como se pegasse carona no vento que lhe bate às costas. À medida com que anda, escuta alguém chamar-lhe ao fundo, mas não dá importância. Da maneira como sorri, qualquer pessoa se torna imperceptível aos olhos. Só escuta a si próprio, bem como à sua consciência. Consciência esta que lhe traiu ao tempo de provar-se capaz.

A vida esconde o momento da verdadeira prova, e não revela o resultado. Só se saberá da aprovação quando estiver no céu ou no inferno. Provar da incapacidade é um susto, uma surpresa do destino. De repente, descobrimos não conseguir pular um muro ou construir um diálogo sobre o clima frio da cidade.

Sua face carrega uma expressão cansada, abatida, mas também dotada de uma alegria inocente. Seu sorriso ignora qualquer fato alheio oriundo de novidade. De novo, o seu sorriso. É o mesmo, com sol ou chuva. Não que isso valha como um mérito; a bem da verdade é como se tivesse tomado um soco no queixo. Os furos em sua roupa denunciam a falta de cuidado – não propriamente consigo mesmo, mas por não ter ninguém que cuide de si. Apesar da freqüência com que se mostra, não sei onde mora – tampouco se possui um lar.

Observo-o pela manhã, descendo a Avenida Doutor Lisboa; na noite, é fácil vê-lo andando pelos bares. Tenho pra mim que não se lembra de quando perdeu a lucidez. Pergunto-me se há ainda uma memória dentro de sua cabeça. Vejo este louco passar e me apetece conhecer os seus gostos. Saber se prefere Pepsi ou Coca-cola, ou se vê diferença entre os pastéis mais populares de Pouso Alegre. Vejo o entusiasmo com que cumprimenta as pessoas na farmácia, no posto de gasolina e no boteco. Imagino-me no lugar dele – ao menos que por um dia; desconhecer das notícias, ignorar a falsidade, não decepcionar-se com a chuva, nem sofrer por amor; ter a serenidade de confundir os sonhos com a realidade; a paz de não preocupar-se com a realização dos planos. De viver sem ser vivido. Sentir na pele a indiferença, bater no peito e dizer: a ignorância é uma benção.

Das pequenas reflexões cotidianas - I

Dispenso o misticismo. Se fosse atribuir um segundo sentido a tudo que me rodeia, tenho certeza de que já estaria louco. Mas, confesso, não condeno quem o faz. É confortável lançar todas as cargas e pesares à responsabilidade dos Deuses e dos astros; vejo que nisso a vida alcança até um pouco de graça. A rotina se parece tão impossível de ser transpassada que encaramos o fim de semana como um milagre natural. E então agarramos o tempo. Rezamos pela segurança do carro no estacionamento e consultamos o horóscopo antes do primeiro drinque de sexta-feira. Nesse sentido o mundo gira. Quanto a mim, vou orando pra que minha cerveja não esquente.

Do vento


É tempo de outrora. Há, lá fora, uma leve sugestão do vento, que nos sopra distraidamente aos ouvidos o resultado do fim do dia. Uma desatenta persuasão do destino, querendo que eu me atire no rio mais próximo e deixe-me levar pela corrente. Mas desatento também o sou. Tão, ou mais do que o vento, pois em vez de escutá-lo, o vejo. Vejo o que não se mostra. Estou a mirar o reflexo dos lagos e as asas do beija-flor, que de tão rápido que batem se passam despercebidas. Deito no colo da procrastinação e peço um café. Na boca, o gosto antigo da descoberta. Há tempos que não descubro o seguinte. Outro gosto, trago, amargo do que é pouco. É tempo de escutar. A cinza do alto precisa serenidade. Balanço na rede e me aventuro em remotas lembranças. Cometo um delito em segredo, gargalhando o fato do abalo moralístico que viria a sofrer se o vento visse a si próprio, e o beija-flor não batesse mais as asas e o café me engasgasse a boca e tudo isso tivesse ouvidos. O que haveria havido? Deixo que o vento leve; bem como a corrente. Pulo da rede às asas da fênix. Vôo tranqüilo, expectativa de céu limpo, mas não de aterrissagem. Era Setembro, mas podia ser ontem. A vida é uma piada sem graça, mas inteligente. Dessas que a gente só consegue rir depois de muito esperar; dessas que a gente olha pra cara de bobo do outro, e ri, fingindo entender o porquê de uns irem e os outros ficarem. Bobo sou eu. Ora, a piada não está na vida; está na morte. Essa coisa de substituírem uns aos outros sem critério, levando os bons, deixando os ruins e mascarando o mistério com coisas como a idade e a doença. A doença que não se decifra. Uma interrogação em cada tosse. Era Setembro, mas podia ser Janeiro. Um frio me subia o dorso, e eu, sobre a fênix, a olhar tudo do alto – tudo de longe. Como um mirante em desacordo. Uma ternura embalada num berço de névoa. Disse a idade e a doença, mas poderia ser simplesmente saudade. A insistência da memória em puxar aquele verde da infância e aquela forma doutro sonho. Contenho-me com o silêncio. Resumo a concordância com a vida num aceno de cabeça. Não perdôo o vento por não se mostrar, nem condeno a rapidez do beija-flor em voar tão rápido, como se esquecessem de quem os observa, como o faço agora. A naturalidade é uma resposta discreta. Bonito é conseguir se esconder. Decisão é saber esperar. Que tenho eu com a vida?

...
http://www.youtube.com/watch?feature=endscreen&v=5YJKsYRly_8&NR=1

Chalé

Teu corpo anunciando a manhã e eu fingindo dormir, ignorando a alvorada. Um raio de luz, que não aparenta passar dos cinco centímetros, atravessa a cortina por uma fresta. Pássaros assobiam qualquer coisa lá fora. Acordo e não abro os olhos. Como é prazerosa a dúvida ao acordar – evitamos a imagem pra prolongar o sonho; despertamos e descobrimos a realidade. É tudo real. A garrafa de vinho vazia prova melhor do que um beliscão. Percorro a íris pelo cenário: duas taças na mesa, um violão ao pé da cama, lenha queimada na lareira, uma embalagem de chocolate. Você. Ameaço manter os olhos abertos, mas tenho medo de que perceba. É confortável te olhar assim: despercebido, sem deixar de ser atento. Meu único desejo é que continue dormindo – se é que está mesmo apagada e não prolongando o sonho da mesma maneira como eu próprio estava há dois ou três minutos. O fato é que há charme no voyeur unilateral. Um mistério nos pensamentos. Uma dúvida quase nítida, buscando decifrar os símbolos do sonho que nunca tem sentido. Sua cabeça deita sobre meu braço e não ligo que ambos durmam. Fecho os olhos, abro, torno a fechar. Estou a catar momentos da noite passada – sair do chalé num frio de arder o corpo, invadir a cozinha, assaltar a geladeira. Roubar o queijo que não é nosso.  Cúmplices. Meu olhar, que tanto protegi durante todo esse tempo, foi descoberto; ninguém virou pedra. Volto ao presente: meu sono sem pressa, o descaso com a rotina, despreocupado com a estrada que pegarei daqui a um instante. Alguém, bem longe, tira o leite e côa o café. Muito mato, pouca gente. Esqueci dos compromissos que tinha marcado para a noite anterior. O acaso sugere a esperança de tudo se ajeitar. A paz deixou de ser desejo e se tornou um fato. Os pássaros continuam a assobiar qualquer coisa lá fora. Acordo e não abro os olhos. É tudo real.

Terapia



Sabe o que é, Doutor: eu não tenho nada. Não sou doente não. Minha esposa me mandou aqui. Disse ter ligado pra secretária na terça, não, na quinta, sei lá, mas não tenho nada pra falar. Não gosto muito de silêncio, se é que me entende. Nem tenho tempo pra isso; no banco é uma correria: caixa, conta, porta giratória – é tudo uma loucura. Tenho cara de louco? Então, Doutor, não é pra eu estar aqui, não senhor. Ademais, não me agrada a ideia de ficar falando sozinho. Se o senhor quiser saber da minha história, podemos muito bem marcar uma cervejinha no bar do Jair, logo ali, em cima da Igreja, sexta-feira seria ótimo. E esse jeito de conversar deitado, olhando pro teto? Quem inventou? É pra ficar reparando que o ventilador está sujo? Estranho né, Doutor, quando eu era novo costumava reparar nas coisas; agora velho, com a vista cansada, tudo parece tão igual. Minha esposa, a Ruth, vive reclamando que não reparo nela; no cabelo, na unha, na roupa. A coitada também me vem falar da vida na hora do Jornal, ou atrasa e bate com o maldito horário do jogo, puta que pariu, né Doutor, tanta coisa pra preocupar: o goleiro do meu time, a dor nas costas, o caixa no banco, e a Ruth vem me alugar justo na hora errada. Eu reparo nela sim, sei até o dia que ela vai à missa, é sempre no Domingo, Doutor. A gente até deita junto, mas eu durmo primeiro. Ela não gosta, fica brava, diz que faz questão de conversar, que é a única hora do dia que a gente tem, que de manhã é uma correria maluca pra levar os moleques pra escola. Puta que pariu, né Doutor, fico o dia inteiro naquele inferno, já até perdi dinheiro, e a vista cansada, a dor nas costas, o goleiro do meu time, e a Ruth me cobrando que eu não reparo nela, que eu durmo primeiro e que eu não levo os moleques pra escola. Já fiz muito isso, Doutor. Quando a gente casou, eu fazia o café e até buscava o pão. Mas hoje, com essa dor nas costas... O gerente do banco ta me cobrando, fica falando pra eu ficar de cara boa com os clientes porque é a nova política da empresa. Puta que pariu, política da empresa, manda o empresário vir contar dinheiro no meu lugar então. Já te disse que perdi dinheiro esses dias? Não dá, Doutor, a vista ta cansada. A propósito, já comecei a falar, o senhor não vai dizer nada? O que quer saber agora? Dos meus filhos? Já te disse que tenho filhos? Me estouram a paciência, fico puto. Uma desorganização, um descaso com a vida. Na idade deles eu já trabalhava, e ai de falar alto com alguém, tomava um tapa na boca. Mas são bonzinhos, os dois. Pelo menos não usam drogas. Filho viciado eu não aceito. O filho do Vitor, por exemplo, é um puta maconheiro – já até falei pro meu mais velho ficar longe. Educação moderna é difícil, se é que o senhor me entende. A escola mete tanto o bico que to quase entregando o mais novo pra ela cuidar. Te falei que sou casado mesmo? No papel? A Ruth é gente fina, mas não sei, não tenho mais tanto tesão, sabe Doutor. O sexo não é dos piores, mas também não faço tanta questão. Fazer amor é bom, todo mundo sabe. Mas parece companheira, amiga, sei lá. Fico meio sem graça de pedir pra ela fazer algumas coisas. Não a traio não. Mas meu olho não tem dono, se é que o senhor me entende. Não posso ver a filha do Seu Tomás da padaria que fico louco, Doutor. A menina é uma delícia. Mas não traio ela não, tadinha, imagina a Ruth, ia ficar triste demais. A Ruth esses dias deu pra falar da minha barriga, como se a dela também não tivesse crescido. Veja só, com essa dor nas costas, essa vista cansada, esses dois moleques, se eu não tomar uma cerveja no fim do dia, prefiro morrer de vez. Não tem jeito, Doutor. Estou cansado. Sinto sono o dia inteirinho. De vez em quando vou ao banheiro do banco, tranco a porta, sento na privada e tiro um cochilo. Ninguém vê, pensam que estou cagando. Não dá, Doutor, é muito sono mesmo. Minha esposa até me deu vitamina pra tomar, mas eu esqueço. Tanta coisa pra lembrar, conta de água, luz, telefone, puta que pariu. Bonito o ventilador do Senhor, já consegui reparar, é de bronze né? Se minha esposa visse, ia querer um igualzinho, haja dinheiro. Sabe, Doutor, o meu pescoço ta doendo de ficar deitado assim, vou levantar, acho que já deu, fiquei até sem graça, só eu falei, mas foi bom, Doutor, não doeu nada, com 55 anos, confesso, foi pior fazer o exame da próstata. Olha, conheci o senhor agora, mas hoje é sexta, sabe como é, tem um joelho de porco e um copo de cerveja me esperando, ali em cima da igreja, no bar do Jair, e já é tarde, não posso atrasar, o Roberto e o Armando já pediram até outra mesa, vamos comigo, Doutor, a gente passa em frente à padaria e eu te mostro a filha do Seu Tomás, uma delícia.

A hora e a vez de João da Espera


(...) 

E de repente a vida soltou as rédeas. Fruto de um parto prematuro, ele se deixou levar pelo vento. Alimentou-se na estufa da esquina e se esqueceu de tomar vitaminas. Caminhou sozinho. Cruzamentos, viadutos, becos; o destino até parece um labirinto. Um dia, no ponto de ônibus, como que à sua espera, encontrou alguém. A pessoa, então desconhecida, lhe disse coisas que nunca havia escutado. Num ímpeto, decidiu levá-la consigo. Caminhou acompanhado. Os cruzamentos, viadutos e becos, pareciam diferentes. Pelo nascimento antecipado que tivera, passou a ter os sentidos comprometidos. O que parecia sinestesia era deficiência. Até pensou em pedir à pessoa para quem dava as mãos que lhe dissesse o real cheiro do Centro ou as cores do semáforo. Saber quando ir sempre foi, para ele, coisa das mais importantes. O verde e o vermelho têm um quê metafísico, instintivo. Em dias tristes, quando nada o esperava, não se importava em aguardar os segundos procrastinadores do sinal rubro. Se o outro dava às caras, não notava e chamavam-no de lento. De maneira semelhante acontecia nos dias de chuva – a consciência se afogava no café e a audição não era capaz de distinguir um choro, de um riso. Uma distração lhe fazia esquecer agora das datas. Lembrava-se de que tinha uma pessoa, mas se confundia quanto a ela. Sabia que gostava. Bastante. Com ela, até aprendeu a falar. Mas demasiado distante de alcançar qualquer solução. Sua inteligência era dotada de uma vontade morta, uma paisagem sôfrega. Devo ter mencionado que o sujeito dormia n’uma estalagem; acostumara-se com o silêncio. Acostumara-se com pouca gente. Tão díspare. A poucos metros do portão de ferro enferrujado que delimitava o espaço em que dormia, uma multidão marcava passos e compromissos. Gritavam-no; principalmente na madrugada. Vândalos e adolescentes invadiam a estalagem a fim de valerem-se de transas e ópio. Fingia que não escutava; desejava que sua pessoa estivesse consigo também à noite. Inclinava levemente a cabeça em busca de uma posição confortável de descanso; em vão. Tinha um charme tosco, um tom de pena, como um corcunda de Notredame contemporâneo. A história trocou a catedral por um galpão. A impotência de calar-se ante o mundo, de viver sempre à espera, de desconhecer quem o possuía, fez com que o homem adquirisse impaciência. Passou a orar por um dilúvio – um desastre poderia arrancar de maneira atroz as telhas da estalagem – e se tivesse sorte, quem sabe um raio o atingisse. Não tinha princípios, mas uma ternura que lhe roubava qualquer tipo de malícia. Nada que lhe tirasse a desconfiança. Nos sábados gostava de caminhar com a pessoa querida pelos mesmos cruzamentos, viadutos e becos. Passavam também pelo mesmo ponto de ônibus, esperando encontrar outra pessoa que se somasse à solidão. Para uma vida tão despercebida, inútil é que eu repita a rotina deste sujeito – percebe-se, de praxe, que uma novidade aqui seria tão improvável quanto a ebulição de um vulcão adormecido. Ocorre que um dia, num raio do destino, João da Espera decidiu voltar a caminhar sozinho. Atravessou o perímetro da estalagem, desviou das tralhas que ocupavam o seu caminho e, de súbito, sentiu a sensação de que nada o traria de volta. Não levou nada – documento não tinha, tampouco alimento em mãos. Passou a ouvir comandos e conseguiu enxergar o azul do céu. No primeiro cruzamento, um carro parou para que atravessasse. No beco, admirou um grafite que destacava o desenho de um homem que se parecia com ele. Foi até a esquina; o semáforo estava verde. Passou a pé sem pensar, como se suas pernas tivessem correntes, e o abdômen, um motor. Desta vez algo o esperava. Só teve o impulso freado quando parou em frente ao ponto de ônibus. Por um motivo que desconhecia, entrou no coletivo que parou ao sinal de uma senhora. O pouco trocado que tinha bastou para que pagasse a passagem. Sentou sem pensar. Com o rosto colado à janela do ônibus viu a cidade passar no caminho. O céu azul deu lugar a um negrume de nuvens que se acumularam como um tufão. A chuva que chegara aumentava gradativamente à medida que João da Espera se afastava da paisagem local. Um dilúvio caiu na cidade da luz. Os carros foram abandonados no meio da rua e o concreto das casas foi descoberto pelo vento que acometeu as telhas e calhas. Um raio caiu na estalagem. Em face da distância, o ônibus seguiu. Nunca mais viram João da Espera. Saber quando ir sempre foi, para ele, coisa das mais importantes. O destino até parece um labirinto.

Tato

Tenho estado vulnerável. Aquém do meu poder de resistir ou extrapolar os limites. Talvez mais sábio em decorrência disso. Percebi a maturidade quando reconheci a fraqueza – e não faltam nessa vida coisas que nos suguem as forças. Mas com tanto ópio, vitrine e sinal verde, fui perder minha resistência logo em você. Com tanta nicotina no mundo, whisky sem gelo e carro importado, o meu poder foi se perder nos seus braços. Li-te-ral-men-te nos seus braços. E não há ser humano nessa terra que me convença do contrário; não há gente que me dane afirmando que, “não, os braços são menos importantes que os seios, o nariz e a boca”. Não há tom blasé que me passe a perna. Pois afirmo num petardo, sem hesitar: sou um apaixonado por teus braços. 

Apesar de preencher os requisitos da receita de Vinícius, não foram os pescoços longos, as saboneteiras, nem os olhos de certa maldade inocente que me fizeram ultrapassar a impressão de você – mas os braços. E dos cinco sentidos que restam a um pobre corpo humano, foi justamente o mais despercebido que me enfraqueceu: o tato. Pele com pele. Que me desculpem o olfato e a audição, mas o tato é fundamental. Explico o motivo: carinho. Carinho no braço.  Só o tato faz carinho. Entendo a dificuldade de estabelecer uma hierarquia entre os sentidos – não me imagino vivendo sem algum. Se eu fosse cego, surdo ou mudo, certamente seria o pior deles. 

Ocorre que quando estamos juntos, frente à tela de um filme, de ouvidos à cena dramática, minha atenção aguardando o curioso desenlace da história, é justamente nessa hora, que você descobre o meu braço – com o seu braço. Aí eu perco o foco; e não há filme do Almodóvar que me faça ler as legendas. Não há cena do Woody Allen que me tome à impressão. Não há tiro do Tarantino que chegue aos meus ouvidos. Seus dedos caminham com calma a distância de um continente, que não é nada mais do que o perímetro que vai do meu ombro à minha mão. Tocam as minhas veias em movimentos elípticos e as unhas eventualmente pressionam o antebraço com a paciência de uma canoa. Já mencionei que perco o foco. Tento, em vão, fingir que não percebo; tento buscar outra fotografia com a lente da minha íris. À toa. Minha cabeça deita. Olho pros nossos braços. Juntos. Busco um prédio na janela, uma chuva ou luz acesa. Você fala comigo; não escuto. Sou um eterno distraído. Um quase surdo. Um quase cego. Um completo mudo. Minha capacidade de proferir algo é assaltada. O carinho é o ladrão dos sentidos.


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Dos males, o menor.

carência 

s. f.
1. Falta do que é preciso.
2. Necessidade.
3. Privação.


Quando entrei no orfanato, no último sábado, dei de cara com um garoto que caminhava de ponta cabeça. Suas mãos tomavam o lugar dos pés num petardo que só a arte da bananeira é capaz de conseguir. Me apresentei; ele também. Fui indagado sobre o porquê do meu nariz pintado e do chapéu que carregava um sino nas extremidades. De pronto eu disse que estava lá para brincar e, num repente, outras crianças chegaram. Muitas delas – loiras, morenas, negras e até com pinta oriental. Minha criatividade para inventar algo que entretesse os garotos foi sucumbida. Não consegui ir muito além do controle de bexigas e dos desenhos mal-feitos, o que me fez apelar para o violão.

O instrumento foi como uma lâmpada mágica – garotas e moleques dispersos se enfileiraram a fim de obter uma foto de pôster, com óculos escuros e violão nos braços. Pediram músicas – que eu não sabia tocar. Não parecia importante que eu soubesse, desde que fizesse soar das cordas qualquer barulho com som de novidade. A timidez passou e as informações começaram a ser trocadas. Apareceram outros voluntários com criatividade à flor da pele e peguei emprestada uma ou outra brincadeira para descontrair o ambiente. As horas passaram e fui embora numa chuva de conclusões delineadas por dúvidas e gratidão.

Hoje fui ao asilo. Nada de bananeira. As pernas de quem eu encontrei cederam seu espaço às cadeiras de rodas. Andadores ritmavam lentamente o passo de dezenas dos idosos que fitei. A entrada é marcada por um jardim de roseiras e um sino colocado ao alto de um crucifixo. O local se divide em longos corredores que dão ao cenário um caráter místico de labirinto. Quartos e mais quartos identificados por números e nomes, catalisam o asilo, cedendo aos residentes um repouso digno, porém simples. Muito simples; de uma simplicidade capaz de questionar a legitimidade do que é, de fato, digno.

Caminhei mais um pouco e fitei os anciãos. O caminho foi marcado por cumprimentos e conversas ligeiras sobre o almoço que tiveram e a chuva que estava para cair. O clima sempre é um assunto. Quando percebia maior receptividade, parava para alongar o papo.

A primeira me contou do tempo que já estava lá, do aniversário que acabara de fazer e do pino colocado em seu joelho direito. Angelina é de uma simpatia capaz de pegar emprestado o charme e o sobrenome da atriz homônima; tem pinta de Jolie.

O segundo a me contar mais que o habitual papo-rápido foi um senhor que julga ler as mãos e desvendar o futuro. Quanto ameacei esticar a minha até ele, fui avisado: a previsão custa 50 reais. Deixei quieto e botei minha sorte nas contas do destino, sem duvidar da capacidade médium do senhor.

Conheci também um velho com uma imensa bagagem de histórias sobre sua vida em São Paulo – muitos dos velhos deste asilo são de São Paulo. Escutei contos que iam do pasto ao puteiro; histórias de sexo capazes de dar inveja às letras do velho safado Bukowski. Brinquei que vou levá-lo à zona antes que ele morra; ele riu e disse que irá cobrar.

Um coral e três palhaços se juntaram a nós para dinamizar o duro fardo de quem não espera mais nada deste mundo. Ao longo da música, lágrimas e risos ecoaram no local, provando que nunca se é velho demais para chorar.

Quando se visita um ambiente de pessoas carentes a interrogativa é inevitável. Qualquer um, por mais relapso que seja, vira perspicaz entrevistador. O cenário se torna uma chuva de perguntas curiosas sobre as conquistas do passado e as expectativas do futuro. É prazeroso aprender com questões e respostas.

Pra quem perdeu uma avó há pouco tempo, uma visita ao asilo é um soco no estômago. Minha garganta deu um nó. Sabe-se lá as razões de um abandono. Escutei frases que iam de ditados a filosofias originais, que poderiam ter sido proferidas por Jean Paul Sartre ou pelo velho pipoqueiro da praça que perdeu os filhos.

Quase todos os quartos são marcados por altares, numa fartura de santos com potencial de fazer do local um quase-templo – não fosse pela ausência de milagres. Os idosos do asilo sabem a data exata de quando entraram. A vontade de sair do retiro é quase unanimidade.

Os males se camuflam com o tempo; só mudam de forma. Na infância um braço quebrado é motivo de revolta. Na adolescência, uma espinha é razão para suicídio. Na vida adulta, não há nada pior que dívidas. No fim da vida, o Alzheimer amacia o peito com um tapa de luva e o Parkinson marca o corpo feito um ferro quente.

Despedir-se das pessoas carentes é sempre uma tarefa difícil. Sempre há lágrimas de um dos lados da corrente e o medo da solidão volta ao presente como um pesadelo indeclinável. É preciso ceder tempo, ceder espaço. Doar. A carência é o pior dos males. A carência é a sede da alma.

Banho de água fria

Não desprezar as escolhas que vêm do nada. Não subestimar as decisões que aparecem sem pedir licença. As melhores coisas da vida não têm gosto conhecido. A surpresa não dá tempo à ansiedade. Deixar correr a sensação do inédito; o minuto seguinte é um curta a ser filmado. Não parar, não negar, não calar. Caminhar contra o tempo na calçada do destino – o granizo é um afago que ainda não foi encontrado. Haverá sempre uma dúvida. Haverá sempre um vidro fosco. Nunca se sabe do amargo do tinto ou do fel do incolor. O amanhã é o fim do mundo.

Ato de fim de semana

(...)

Téo já previra o que iria acontecer, no momento em que deitou a cabeça na pedra. Observava o céu e as nuvens com uma densa dúvida sobre quem se movia mais rápido. Frente aos seus olhos, uma linha divisória destacava o azul, lado a lado com as espumas de vapor que mais pareciam às barbas de um velho – Deus, quem sabe. O contraste das cores fez com que se lembrasse do Rio Negro e do Solimões. Por pensar em rios, recordou também o Tejo, memória esta que o levou a Portugal – país onde nunca havia estado antes. Nesse meio tempo, concluiu que o lirismo é português.

Como é belo o milagre da intuição. Despertamos e nem reparamos que o compasso do peito é o que dita como vai ser o dia. A falta de ar que Téo sentia poderia servir – para os mais perspicazes – como pista para a decepção que teria em breve.  Criar expectativa é financiar felicidade – lembrou-se. O presente foi tomado por uma dicotomia razão-paixão, que de tão ácida, foi encarada como desilusão. Uma desilusão amorosa que não tratava de amor, mas de paixão – o que não exclui a possibilidade do afeto unilateral.

Téo se levantou e caminhou até o quarto, naquela velha necessidade de sepultar as perguntas com respostas. Gaia lia Woolf, sentada de pernas cruzadas como fazem os hindus. Fitou-a. Ela não levou mais que um instante para perceber e interrogar o desespero do homem.

- O que houve?
- Nada, ainda.
- Você fala como se descobrisse o fim do mundo. Se nada aconteceu, não há motivos para desapontamentos.
- Tu não entendes, Gaia. O problema é justamente que nada aconteceu. Cada vez que abandono as rédeas da minha vida em prol do destino, caio do cavalo.
- Está mal por ontem?
- Não encarei de todo o mal as coisas que se passaram. A verdade é que a nossa percepção do momento é um tanto destorcida e a gente acaba se perdendo. De repente, já tomamos partido e voltar atrás em algumas coisas acaba se tornando uma difícil tarefa.
- As expectativas comerão sua alma, Téo.

Sobre outras perdas e Elegias

Quem visse a cena de fora com certeza daria risada – na certa encararia como brincadeira o que aquela senhora estava fazendo, rezando pai-nosso e ave-maria com o megafone do neto em mãos. Megafone, que, diga-se de passagem, estava com o volume no máximo. O instrumento que já foi utilizado por policiais e estudantes, revolucionários da direita e da esquerda, estava ineditamente sendo utilizado como meio para propagar as orações católicas de uma senhora dotada de fé, netos e bisnetos.

O momento em que se passou a dita cena foi na última ceia de natal. Toda a família presente naquele clima que só o Dezembro ocidental pode proporcionar: primos bêbados, tios bêbados, crianças comparando presentes e mulheres empanturradas de comida pela ceia que foi posta à mesa.

Após as orações triviais a senhorinha arriscou uma reza em línguas, que misturada ao eco do instrumento em mãos e a descontração do clima, acabou por se tornar algo ligeiramente caricato, fazendo com que todos segurassem o riso. Olharam-se os netos, os tios e até os cães, esperando o final da oração para que pudessem servir a comida posta à mesa. Quando ninguém aguardava mais nada da boca da avó, eis que surge um breve “Atacar(!)” proferido por ela. Ninguém segurou o riso – netos, genros e derivados gargalharam e a velha levou a pérola na brincadeira.

Foi um bom natal pra uma família que recentemente vivenciou uma tragédia – pensei em aliviar na definição, mas o termo foi inevitável. Sim, foi uma tragédia, que nem a hermenêutica dos Maias pode interpretar ou dar consolo a todos que foram atingidos pelo impacto. Cogitei se teríamos mesmo um natal depois do que tinha se passado, mas com tradição não se brinca. A Família da Dona Inda sempre prezou pelo mês do nascimento daquele que chamam de salvador. Há fartura nos pratos, nos copos e até(!) nos corações – não é estranho deparar-se com parentes ímpares trocando idéias e experiências no momento da ceia ou do tão batido amigo oculto.

Ninguém reparou, mas a matriarca – genitora de um filho e de uma penca de mulheres – precisou de muito jogo de cintura pra conseguir manter o clima coloquial de que todos sempre se valeram. Dotada de uma serenidade de quem já muito se esbravejou, ela não condenava as mesas de café, fofoca e jogatina que compõem a rotina das mulheres da família. Tampouco julgava o porre dos netos e dos genros depois das tantas caixas de cerveja. É quase uma regra: se cansa na juventude para descansar na velhice. A verdadeira serenidade só vem depois de muita luta.

Tive com ela quinta passada, no hospital. A senhora tinha sido internada às pressas por uma razão que eu desconhecia. Cheguei ao momento em que ela mudava de quarto, e ainda que tenha sido escasso o tempo do diálogo entre nós naquela noite, denso foi o conteúdo que nele se constava. Minha avó comentou sobre meu texto e a minha barba, soltando um suspiro de cansaço depois disso. Quando ia me despedir, pediu oração.

Confesso que não sou doutor em orações – e diferente de muitos outros, creio que religião se discute sim. Nunca foi tabu conversar com a Inda, velha rezadeira, sobre a conduta dos padres em pedir dízimos incansavelmente ou em atrasar demasiado a missa e a cabeça dos fiéis. Voltei ao hospital no outro dia e não houve diálogo; ela estava mal. É claro que a preocupação existiu, mas de uma forma muito displicente, de modo que me fez até planejar uma viagem no fim de semana para entreter o estrangeiro que estava dormindo em casa.

Na madrugada do outro dia recebi a notícia de que a senhora dos terços e dos cafés tinha se ido. Senti no peito novamente o soco ácido que só a morte pode proporcionar. Vi-me de novo naquela manhã de 4 de Setembro. Vi minha mãe aos prantos, ainda que longe de casa. Vi o incerto. Visto de longe, parece mais fácil assimilar a perda de uma anciã, que já viveu o que tinha pra viver. Visto de perto, morte é morte; não tem idade, nem arrependimento. Senti a brisa fria da madrugada na cidade e escutei a música ambiente; de volta à utopia da paz. Um estar longe de tudo, um dejavú de sensações, como se eu já visse e previsse tudo aquilo que acabara de receber. Como se eu ignorasse a frieza do destino.

A hora de ser forte é agora. Dar escora, dar lembrança, dar amor. Na nossa família ninguém vai entregar o ponto. Uma onda de pesares, uma ressaca de serenidades. A verdadeira paz só vem depois de muita luta. Quem sabe será mais fácil com você aí em cima, Vó.

Bodas de Prata [ Baseado em fatos reais]


Um casal. Ambos da mesma idade. Ele era pobre, ela também. Ele saiu da roça e estudou em um colégio de padres na cidade, sustentado por seu tio, que era padre. Ela era filha de açougueiro e fazia um rolê vendendo cosméticos. Ela foi pra escola; ele pro seminário. Ele estudou história. Ela, ensino religioso. Passou um tempo. Ambos gostavam das letras. Ela quis estudá-las na faculdade enquanto ele permanecia rezando as mesmas no retiro. Ele queria ser padre. Ela, catequista.

Sabe-se lá que sonhos estranhos – quiçá eróticos – o tal jovem seminarista teve, mas decidiu largar o seminário. No mesmo momento, a moçinha inocente da cidade já tinha seus contatos profissionais desde o primeiro emprego no fórum – sabe-se lá também como, pois era tímida.

Ressalto: ambos eram tímidos (!). Ele saiu do seminário repleto de métodos, manias e sistematicidades: não aparava a barba, rezava três ave-marias a cada manhã e nada de chegar perto do que o diabo gosta. Bebida, nem pensar. Nem pra ele, nem pra ela. Pais bravos, os dois tinham. Não seria estranho que um dia se cruzassem pela vida num banco de uma praça qualquer e discutissem sobre a fonte, a igreja e o amor. Pois é, não foi. Ou melhor, foi, e foi mais ou menos assim, um pouco depois de se conhecerem:

- Que dia é hoje? – ela pergunta ao barbudo do sertão vizinho.
- 1º de Abril, Dia da mentira.
- E como sabe? Há de fazer alguma coisa hoje?
- Nem hoje nem amanhã.
- E por quê?
- Porque amanhã é meu aniversário.

A moça riu. Não conseguiu segurar a timidez, desconfiando da afirmativa do caipira como todo mundo faz em dia da mentira após receber uma observação curiosa ou boa demais para ser verdade. “Inocência tem limite”, pensou ela. O caipira não riu. Talvez porque fosse mesmo um caipira, ainda que dotado da cultura católica. Percebendo a hostilidade do clima e o acato do jovem mineiro, a garota insiste:
            
- Amanhã é mesmo seu aniversário?

Ele confirmou. Não sei ao certo se rolou uns parabéns da parte dela. Algo além disso não teve; no máximo um “tudo de bom”, ambos eram tímidos demais para tanto. E então se despediram.

Pra um jovem recém-saído de um seminário repleto de padres gordos e velhos em meio a adolescentes bitolados em altares e pais-nosso, um sorriso de uma loira interiorana sob o azul do céu em plena tarde pacata no banco de uma praça pode ser uma grande avalanche para o coração; uma espécie de prenda ou sugestão do destino. É claro que ele se apaixonou. O difícil foi ela encontrar razões para gostar de um caboclo sertanejo barbudo que acabou de sair do seminário. “Sem a barba, ele deve ser bonito” – há de ter pensado a jovem.

Encontraram-se mais uma vez – por acaso. E depois mais uma – por querer. E depois outra e outra e outra. Namoraram. O rapaz da roça não sabia ao certo se era mais difícil enfrentar a sua timidez ou a braveza do pai da moça. Namoravam na casa dela – até as 20hrs. Mais que isso era putaria, desacato à família católica dos amantes. De novo o impulso do tempo, do destino e dos hormônios fez com que ambos dessem outro passo importante nos problemas do amor.

O caipira arrumou um emprego no banco, ainda barbudo. A moçinha foi parar num cartório. Estabilizaram-se e depois se casaram. Era pra ser esse o final de uma história em que a única parte cômica foi aquela coincidência do encontro em 1º de abril. Poderia ser também o começo de uma história sobre uma família perfeita, politicamente correta e sem vícios de convivência – o filho mais velho não beberia, o mais novo estudaria e a genética do casal terminaria o resto do trabalho. Mas não, não foi assim.

Com 26 anos ele teve seu primeiro Happy hour, o primeiro copo gelado de cerveja – provavelmente deve ter comentado com os colegas de trabalho que a bebida dourada amargava a boca e que na próxima não ousaria nem provar, pediria um suco. Ela aprendeu a dançar, afinal, agora que eram casados, não havia horário que limitasse o pudor dos pombinhos. Com a cerveja ele acostumou; depois de um tempo, até incentivou que ela também estreasse no campo dos que bebem socialmente - em rodas de amigos, com salaminhos, amendoins e azeitonas. Por fim, gostaram. Haveria de ter cerveja nas compras do mês.

Ela adquiriu independência, dirigir ela já sabia, só faltava o próprio dinheiro praquele estereótipo da tão sonhada autonomia de mulher do século XX. Anos se passaram. Aprimoraram na dança, na cerveja e no sexo. Depois de uns anos, o primeiro filho nasceu.

Começaram a freqüentar novos ambientes – criar filho novo tem dessas coisas. Iam passear na praia e na cidade grande. Novidades não faltavam, mas a praia era quente e a cerveja começou a ficar pouca pro casal. As danças também passaram a cair na rotina e o pai de família foi buscar novos horizontes; acabou encontrando o samba. Tudo passou a mudar gradativamente, exceto pela barba do rapaz.

Não demorou muito pra que outro filho viesse. Quanto mais contas, mais problemas; quanto mais problemas, mais cerveja; quanto mais cerveja, mais samba. Foi aí que tudo mudou, num piscar de olhos, sem ninguém perceber – nem mesmo os filhos. Épocas difíceis expandiram o rol de amizades que foi muito além daqueles bons e velhos padrinhos de casamento. Quem via de fora estranhava: “um seminarista, intelectual, sertanejo, que toca percussão na roda de samba em meio a caixas de cerveja, não pode ser normal”. Nada que atrapalhasse.

Os filhos foram crescendo e comida não faltou. Bebida muito menos – até dizem que o mais velho se aventura nas artes do copo enquanto toca violão depois da faculdade. Samba também não faltou – o mais novo aprendeu a arte do cavaco e desbrava as madrugadas com batuque e lalaiá. Crises, várias; mas  marolinhas.

É incrível como o casamento – ou o amor – pode mudar os hábitos de um casal num desgaste de calendário.  Mudaram tanto ao longo dos anos que voltaram a ser quase a mesma coisa depois que os filhos cresceram. Um chocolate dele pra uma TPM dela. Um beijo dela pra enxaqueca dele. Açúcar e adoçante vivendo juntos no mesmo copo. O segredo para uma relação não é manter a mesma em segredo, mas com segredo(s).

Hoje cedo ele acordou, caminhou e não fez a barba; quem sabe pensou em pedi-la novamente em casamento. Ela, enquanto despertava, olhou para os dedos e deu falta nas alianças, até se lembrar de que as havia enviado para dar uma recauchutada.

Encontraram-se na cozinha, acordaram os filhos e tomaram um café daqueles que só a sinceridade da manhã pode nos proporcionar. Com mais quilos e rugas, com mais samba e cerveja, fizeram 25 anos de casados.