Noite adentro

Da varanda do oitavo andar reparo que lá embaixo um porteiro ensaia suas próprias conclusões sob a sombra desta indiferente madrugada de outono. Não que me falte assunto para escrever, mas agora este porteiro é o que me fita de mais humano em minha frente – ainda que em minha frente eu possa ver centenas de telhados, transeuntes e antenas também indiferentes e também sob a mesma madrugada de outono. Ocorre que Severino – sabe-se lá se lhe é este mesmo o nome dado de nascença, mas lhe cabe bem em razão da função – pois, acontece que, este Severino ali embaixo se passa tão despercebido pelos pára-brisas e cortinas que lhe atravessam que sua personalidade daqui já não se fundamenta em outra coisa, senão no bom senso de quem um dia já desprezou ou provou de algum desdenho. Percebe-se que sua rotina não se baseia em outra coisa que não em feições providas de caridades e insatisfações.

Vejo que ele cruza as pernas e encosta-se à coluna do muro – atitude de quem pensa, pois não lhe cabe agora outro ofício em razão das condições de tempo e espaço – e assim, não lhe cabendo mais nada no momento além de vigiar sua pobre alma, filosofa sobre o prazer de haver sido. O momento de introspecção de Severino registra sua vingança frente à indiferença de quem vive no posto da cabine insufilmada de um edifício urbano.

Enquanto termino daqui de cima meu preguiçoso copo d’água noto que Severino também carrega uma bebida em mãos. Os mais distraídos diriam que ele agora poderia estar bebendo qualquer coisa, mas o raciocínio lógico a que o ócio me submete sugere que Severino está bebendo café. Pois, se existe nesse mundo algo sugestivo para um vigia – e filósofo – carregar em mãos numa madrugada silenciosa, cotidiana e sem novidades, é uma boa dose de cafeína.

Percebo que nosso humilde porteiro cruza agora os braços e sai em passos lentos no perímetro do portão. É bem certo que não possui ao alcance outra arma que não seja o interfone – o que atribui ao nosso personagem um tino – até – de corajoso. Mas voltemos ao prazer de haver sido (pois não me resta agora outros traços cabíveis ao caráter deste empregado padrão e as descrições pessoais aqui se encontram um tanto extensas).

Na companhia de uivos perdidos pensa ele agora – o que haveria de ter sido? – E penso eu: há sempre um dia em que somos obrigados a indagar o progresso. E então pensa ele agora que trabalha com portões dia e noite esperando o instante de vencer o humor do síndico. Pensa ele agora que abre e fecha garagens aguardando a recompensa da maleta encontrada cheia de títulos e notas que pertencia ao empresário da cobertura. Pensa ele agora que carrega o fardo de ter hábitos forçados em benefício de sono alheio. Pensa ele agora sem raciocinar.
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Uma luz que se apagou no prédio da frente fez com que eu desviasse o olhar e perdesse Severino de vista. Atentei-me para a cabine escura da portaria e não enxerguei seu vulto. Percorri o olhar sobre os blocos do condomínio e segui sem notícias de nosso vigilante noturno.

Sento na poltrona da varanda, abro um livro e leio: “Outra vida, da cidade que anoitece. Outra alma a de quem olha a noite. Sigo incerto e alegórico. Sou como uma história que alguém houvesse contado.”

Que tenho eu com a vida?


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