Do outro lado

Um dia com os detentos da APAC.


- Onde mora? Te conheço de vista faz tempo. - Disse-me um rapaz nesta manhã de sexta-feira. Quando o fitei também o reconheci e justamente pela localidade interrogada; ele estava certo. Tempos atrás éramos vizinhos. Eu havia acordado cedo com o telefonema da escrivã da 2ª vara cível pedindo para que me dirigisse até o velho arquivo do Fórum. Fui, e quando dei conta, me vi no meio de uma mudança.


A cidade de Pouso Alegre/MG recentemente ganhou um novo local para o exercício dos tradicionais atos jurídicos. Após uma obra no valor de R$ 1.151.464,40, o Fórum Orvieto Butti atua desde 27 de Junho sob novas instalações. O precário – e antigo – edifício situado no centro da cidade, hoje é tombado como patrimônio histórico e até esta semana abrigava os processos arquivados. A mudança foi motivo de grande divergência na cidade. Mesmo com instalações melhores – nas quais se pode contar com elevador, copa e estacionamento – a novidade criou “razões” para que muitas pessoas torcessem o nariz. O principal motivo se deu pela distância, em virtude do – não tão longo – perímetro territorial de Pouso Alegre. O novo endereço dos atos processuais se encontra acerca de 10 a 15 minutos do centro da pequena cidade.
Ocorre que, em razão desta transição, se fez necessário que alguém movesse os processos do velho para o novo arquivo. Tal função foi atribuída a mim – estagiário – e aos detentos da APAC.


APAC é o mesmo que Associação de Proteção e Assistência aos Condenados. Enquanto projeto, acompanhado pela justiça, pode-se afirmar que tal instituição se funda em sucesso e tem total credibilidade ante os membros do judiciário pouso alegrense. Os hábitos e costumes da casa são bem diferentes daqueles vistos corriqueiramente no presídio. Os presos definem sua rotina no projeto como “suave”. Não há brigas por lá e eles se encontram passíveis de falta freqüentemente. Quando quis saber sobre as condições do presídio (outro lado da moeda), recebi um: “é foda”. A superlotação é o maior problema e a ausência de normas para regular a conduta dos detentos faz com que surja a velha guerra de todos contra todos. N’um espaço sem regras, sobrevive o mais forte. Na cadeia é assim.


O rapaz que citei no início do texto é Luan – detento que cumpre pena por meio da APAC. Ele paga cinco anos obedecendo aos ditames da lei 11.343/2006. “A casa é o nosso meio de fumar um cigarrinho e tomar cafezinho enquanto estamos na rua labutando. São três (anos) por um. Pra gente que vive preso, é a solução.” – afirma ele. Na APAC, Luan até aprendeu a fazer pão – que é vendido toda tarde a fim de sustentar o café vespertino dos funcionários. “Profissão ao sair daqui, eu já tenho.” Afirma ele, confiante.


O encargo do qual nos ocupava resumia-se em transportar as caixas de arquivo – soma de processos que não se encontram mais ativos - do segundo piso do prédio até o caminhão, por meio de uma rampa de madeira. Mil e duzentas caixas. Quantidade suficiente para gerar tempo a fim de proporcionar nova troca de experiências com os detentos. O trabalho entre nós era exatamente o mesmo: o primeiro pegava a caixa, arremessava para o segundo, e este jogava para o terceiro, que organizaria em fileiras todas elas. Ao longo do trabalho tive a oportunidade de interrogar displicentemente quase todos eles.


O segundo foi Armando – mineiro de trinta e quatro anos, com esposa e filho. Mora(va) no Chaves - bairro rural do município. Armando foi condenado a 26 anos de regime fechado. Quando pergunto o motivo da condenação, recebo dele, na ponta da língua: “157 com 121”. É mais do que certo que detento no Brasil conhece mais de lei penal do que qualquer estagiário do Direito. O artigo 157 do C.P diz respeito ao furto. Armando responde pelo respectivo crime, acrescentada a pena qualificadora do parágrafo 2º, inciso I do Código penal; resumindo: assalto a mão armada. O homem nega de pé junto que cometera tal ato. Naquele tempo, a delegacia de Brasília recebera uma denúncia anônima na qual seu nome se encontrava. Um ônibus que vinha do Paraguai havia sido saqueado por bandidos armados; o mentor seria ele. Armando – já adulto – assumiu a relação com tal gangue, mas negou a prática do ato infracional. Disse que não foi reconhecido pelas pessoas que assinaram a lista de testemunhas. Não duvidei após ter aprendido que um detento não mente quando não possui mais nada a perder. O outro artigo de Armando foi o 121: homicídio. Quando perguntei o porquê do crime ele se politizou. “Assumi”, disse ele – e mais nada. Talvez tivesse sido um justo motivo.


Cheguei a conversar – ainda que distraidamente – com vários outros presos. A razão da reclusão era quase sempre a mesma: tráfico de drogas. Da marcha legalize vários motivos provém. Hoje a droga é um problema de segurança, enquanto deveria ocupar o cenário da saúde; tendo em vista que um problema de saúde é muito mais fácil de ser combatido pelo governo, pois não depende de bandidos, contando apenas com o bom senso da nossa – nada efetiva – política brasileira. De tão lembrado, tal argumento passou a clichê, mas não à mentira.

Enquanto descarregava, ao lado de meus atípicos colegas, o caminhão cheio de caixas ocupadas por mil-e-um processos correspondentes a conflitos da vida familiar, ouvi de Luan: “Daqui eu vejo minha casa, é logo ali. Fico tão puto. Tão perto e tão longe. Corro contra minhas pernas. Um e oito (anos), e já era.”

Oito horas de trabalho braçal e organizamos o arquivo da 2ª vara cível. Mil e duzentas caixas contendo dezenas de milhares de processos. Milhares vidas que se vão. Volto do Fórum pensativo. Recebi mais respeito dos detentos, do que dos advogados com quem convivo diariamente. Dividi coca-cola, gíria e espaço. Pela vida ou pela morte, por ódio ou por amor: errar é humano.