O homem que marcava passos

Acordou com o pé direito - não em razão de alguma sorte ou bom humor inerente a todos os varões de vinte anos - acordou com o pé direito porque lhe fazia bem a simetria do ato. Foi ao banheiro, conferiu a posição dos frascos de perfume bem como da saboneteira, (re)posicionando os rótulos de modo que ficassem de costas para o espelho. Lavou o rosto abrindo a torneira direita da pia com cinco voltas ritimadas. Secou a face percorrendo o papel toalha da testa ao queixo. Foi até a cozinha em passos ímpares e fez o café das cinco xícaras. Esperara a água ferver escutando o som do rádio após arredondar o volume no display para a dezena mais próxima. Preparou torradas - cinco. Amanteigou-as de forma que anivelasse a superfície da manteiga. Odiava quem fazia crateras no alimento como se fosse a última coisa do último café do último minuto de uma vida. Quando o relógio marcou sete, saiu de casa conferindo três vezes a fechadura - não confiava em portas nem em vizinhos. No ponto de ônibus atentava-se à olheira da enfermeira e ao catarro do moleque que perguntava ao operário se a linha Industrial já havia passado. Subiu no coletivo pelo lado direito e pagou a quantia trocada ao cobrador. Não sentou. Preocupava-o a lotação e a falta de ar, de autonomia e de vida de todas aquelas pessoas que suavam em pleno turno matutino. Não era um deles (?). Desceu um ponto antes para não precisar dividir a divisória direita da porta do veículo. Gostava de caminhar pela manhã reparando nas olheiras das calçadas e nos passos largos dos funcionários uniformizados. Confortava-lhe caminhar no centro - exceto pelas ciganas. Odiava ciganas. Filosofava sobre a vida embaixo daqueles acampamentos sem banheiro e acreditava que receberia uma praga flamenca caso oferecesse a mão para alguma daquelas perdidas. Não tinha pena das crianças sujas de colo. Odiava Ciganas. Conferiu a hora no relógio de pulso para que chegasse a tempo no estudo sem precisar dos cinco minutos de tolerância tão cultivados no cotidiano rotineiro de brasileiro. Não era um deles (?). Talvez realmente não fosse. Sentia pena da mediocridade daqueles que atribuíam todos os problemas da vida a um espaço encontrado entre o intervalo de "ter" e "ser". Pensava: "As pessoas que são, acreditam que sendo, tudo estará resolvido". Arre! Talvez tivesse razão. Existem verbos mais interessantes para se obedecer - como o próprio verbo obedecer. Ou talvez obedecesse a tantos rituais simplesmente para provar a (des)necessidade de obedecer a qualquer coisa. Era um hedonista. Apenas isso. Lembrou-se da última transa e de como sempre tirava o sutiã da amante antes da calcinha, calculando para que fosse um número ímpar a última penetração na genitália feminina.  Agradava-lhe a quantidade do som, a manteiga nivelada e os passos simétricos. Sentia prazer na medida dos atos em meio à sua rotina. Talvez não fosse um transtorno e sim uma solução. Uma solução para a demagogia dos discursos dos colegas de trabalho, dos almoços de domingo e dos padres da paróquia.

Às exatas vinte e duas horas dormiu e sonhou.