O homem down

N’um primeiro momento não conseguiu abrir os olhos – não sei se por inércia do sono ou pela remela concentrada na extremidade dos cílios. A boca carregava um amargo ressecado que o remetia a qualquer uma das doses que tragava repetidamente horas antes de dormir – Campari, talvez. Quando enfim constatou que ainda enxergava teve o impulso do despertar limitado por uma dor que subia da nuca até a cabeça. Não demorou para que o desconforto amanhecido fizesse com que carregasse o peso de todas as atitudes (des)cometidas que – supostamente – cometera; e digo “supostamente”, com tanto tino, pois não haveria neste mundo viv’alma que pudesse lembrar dos fatos passados em tais circunstâncias noturnas. O esquecimento é o pai do arrependimento. Foi do quarto ao banheiro sem sequer saber que horas eram; apenas com a esperança de que, quem sabe, tivesse acordado em outro corpo, outro plano. Falha. O espelho do banheiro lhe cuspia um reflexo de quem já muito fez e pouco aprendeu. O espelho é uma verdade inconveniente - tal como fotografia ou parente distante. Domingo. Em domingos de manhã só existem dois tipos de pessoas: aquelas que vão à missa e aquelas que não despertam. Concluiu que, pelo horário, ao mesmo tempo em que se olhava, qualquer gente daquela primeira classe de pessoas (lato sensu) estaria em cantos eucarísticos pedindo pela salvação de suas almas – ou da dele. Colocou qualquer roupa que suprisse o trajeto caseiro. Na cozinha, tentou água e coca. A água parecia clorada e a coca (cola) tinha gosto de rum. Na cabeça, tinha um pêndulo que lhe atrasava os sentidos de tal modo que não (ou)via muito bem qualquer som oportuno que fosse. Na sala, tentou televisão; e na TV não havia o que tentar. Caminhou até a varanda e de súbito teve a certeza de que não existe nesta vida habitat ideal para um pós-bêbado. Introspecção. A ressaca proporcionava-lhe a chance de filosofar sobre seus dias. Digo isto pois, o ofício de pensar não nos cabe na rotina, aparecendo apenas nesses dias em que tudo é nada. Tinha na barriga qualquer coisa que balançasse o que carregava por dentro dela. Um arroto quase jogou pra fora o pouco que tinha consigo. Tentou lembrar – em vão – do que pudesse ter ocorrido na madrugada anterior. Os ambientes não tinham cor, a música era uma só e qualquer mulher que fosse usava batom vermelho. Qualquer mulher. Nada (em) forma. Fora para a noite por não ter nada a perder - no dia. Voltou para o banheiro; quem sabe o espelho falasse. Do que conseguiu lembrar, não gostou. Foi o suficiente para que sua barriga cuspisse pra fora todo o pouco suprimento que tinha. Ajoelhou em frente ao vaso e deixou que o jato amargo refrescasse sua memória. Concluiu que, pelo horário, ao mesmo tempo, as pessoas que iam à missa devessem estar também ajoelhadas e dificilmente pediam tanto por salvação quanto o pobre impotente. “O banheiro é a igreja de todos os bêbados”, dizia a música. Ajoelhadas, as pessoas não mais se dividiam. Amores mal-sucedidos, amizades esquecidas e falta de dinheiro. Não havia outro remédio. “Que atire a primeira pedra”, cuspiu ele um pouco rouco.