Chalé

Teu corpo anunciando a manhã e eu fingindo dormir, ignorando a alvorada. Um raio de luz, que não aparenta passar dos cinco centímetros, atravessa a cortina por uma fresta. Pássaros assobiam qualquer coisa lá fora. Acordo e não abro os olhos. Como é prazerosa a dúvida ao acordar – evitamos a imagem pra prolongar o sonho; despertamos e descobrimos a realidade. É tudo real. A garrafa de vinho vazia prova melhor do que um beliscão. Percorro a íris pelo cenário: duas taças na mesa, um violão ao pé da cama, lenha queimada na lareira, uma embalagem de chocolate. Você. Ameaço manter os olhos abertos, mas tenho medo de que perceba. É confortável te olhar assim: despercebido, sem deixar de ser atento. Meu único desejo é que continue dormindo – se é que está mesmo apagada e não prolongando o sonho da mesma maneira como eu próprio estava há dois ou três minutos. O fato é que há charme no voyeur unilateral. Um mistério nos pensamentos. Uma dúvida quase nítida, buscando decifrar os símbolos do sonho que nunca tem sentido. Sua cabeça deita sobre meu braço e não ligo que ambos durmam. Fecho os olhos, abro, torno a fechar. Estou a catar momentos da noite passada – sair do chalé num frio de arder o corpo, invadir a cozinha, assaltar a geladeira. Roubar o queijo que não é nosso.  Cúmplices. Meu olhar, que tanto protegi durante todo esse tempo, foi descoberto; ninguém virou pedra. Volto ao presente: meu sono sem pressa, o descaso com a rotina, despreocupado com a estrada que pegarei daqui a um instante. Alguém, bem longe, tira o leite e côa o café. Muito mato, pouca gente. Esqueci dos compromissos que tinha marcado para a noite anterior. O acaso sugere a esperança de tudo se ajeitar. A paz deixou de ser desejo e se tornou um fato. Os pássaros continuam a assobiar qualquer coisa lá fora. Acordo e não abro os olhos. É tudo real.