Dos males, o menor.

carência 

s. f.
1. Falta do que é preciso.
2. Necessidade.
3. Privação.


Quando entrei no orfanato, no último sábado, dei de cara com um garoto que caminhava de ponta cabeça. Suas mãos tomavam o lugar dos pés num petardo que só a arte da bananeira é capaz de conseguir. Me apresentei; ele também. Fui indagado sobre o porquê do meu nariz pintado e do chapéu que carregava um sino nas extremidades. De pronto eu disse que estava lá para brincar e, num repente, outras crianças chegaram. Muitas delas – loiras, morenas, negras e até com pinta oriental. Minha criatividade para inventar algo que entretesse os garotos foi sucumbida. Não consegui ir muito além do controle de bexigas e dos desenhos mal-feitos, o que me fez apelar para o violão.

O instrumento foi como uma lâmpada mágica – garotas e moleques dispersos se enfileiraram a fim de obter uma foto de pôster, com óculos escuros e violão nos braços. Pediram músicas – que eu não sabia tocar. Não parecia importante que eu soubesse, desde que fizesse soar das cordas qualquer barulho com som de novidade. A timidez passou e as informações começaram a ser trocadas. Apareceram outros voluntários com criatividade à flor da pele e peguei emprestada uma ou outra brincadeira para descontrair o ambiente. As horas passaram e fui embora numa chuva de conclusões delineadas por dúvidas e gratidão.

Hoje fui ao asilo. Nada de bananeira. As pernas de quem eu encontrei cederam seu espaço às cadeiras de rodas. Andadores ritmavam lentamente o passo de dezenas dos idosos que fitei. A entrada é marcada por um jardim de roseiras e um sino colocado ao alto de um crucifixo. O local se divide em longos corredores que dão ao cenário um caráter místico de labirinto. Quartos e mais quartos identificados por números e nomes, catalisam o asilo, cedendo aos residentes um repouso digno, porém simples. Muito simples; de uma simplicidade capaz de questionar a legitimidade do que é, de fato, digno.

Caminhei mais um pouco e fitei os anciãos. O caminho foi marcado por cumprimentos e conversas ligeiras sobre o almoço que tiveram e a chuva que estava para cair. O clima sempre é um assunto. Quando percebia maior receptividade, parava para alongar o papo.

A primeira me contou do tempo que já estava lá, do aniversário que acabara de fazer e do pino colocado em seu joelho direito. Angelina é de uma simpatia capaz de pegar emprestado o charme e o sobrenome da atriz homônima; tem pinta de Jolie.

O segundo a me contar mais que o habitual papo-rápido foi um senhor que julga ler as mãos e desvendar o futuro. Quanto ameacei esticar a minha até ele, fui avisado: a previsão custa 50 reais. Deixei quieto e botei minha sorte nas contas do destino, sem duvidar da capacidade médium do senhor.

Conheci também um velho com uma imensa bagagem de histórias sobre sua vida em São Paulo – muitos dos velhos deste asilo são de São Paulo. Escutei contos que iam do pasto ao puteiro; histórias de sexo capazes de dar inveja às letras do velho safado Bukowski. Brinquei que vou levá-lo à zona antes que ele morra; ele riu e disse que irá cobrar.

Um coral e três palhaços se juntaram a nós para dinamizar o duro fardo de quem não espera mais nada deste mundo. Ao longo da música, lágrimas e risos ecoaram no local, provando que nunca se é velho demais para chorar.

Quando se visita um ambiente de pessoas carentes a interrogativa é inevitável. Qualquer um, por mais relapso que seja, vira perspicaz entrevistador. O cenário se torna uma chuva de perguntas curiosas sobre as conquistas do passado e as expectativas do futuro. É prazeroso aprender com questões e respostas.

Pra quem perdeu uma avó há pouco tempo, uma visita ao asilo é um soco no estômago. Minha garganta deu um nó. Sabe-se lá as razões de um abandono. Escutei frases que iam de ditados a filosofias originais, que poderiam ter sido proferidas por Jean Paul Sartre ou pelo velho pipoqueiro da praça que perdeu os filhos.

Quase todos os quartos são marcados por altares, numa fartura de santos com potencial de fazer do local um quase-templo – não fosse pela ausência de milagres. Os idosos do asilo sabem a data exata de quando entraram. A vontade de sair do retiro é quase unanimidade.

Os males se camuflam com o tempo; só mudam de forma. Na infância um braço quebrado é motivo de revolta. Na adolescência, uma espinha é razão para suicídio. Na vida adulta, não há nada pior que dívidas. No fim da vida, o Alzheimer amacia o peito com um tapa de luva e o Parkinson marca o corpo feito um ferro quente.

Despedir-se das pessoas carentes é sempre uma tarefa difícil. Sempre há lágrimas de um dos lados da corrente e o medo da solidão volta ao presente como um pesadelo indeclinável. É preciso ceder tempo, ceder espaço. Doar. A carência é o pior dos males. A carência é a sede da alma.