Bodas de Prata [ Baseado em fatos reais]


Um casal. Ambos da mesma idade. Ele era pobre, ela também. Ele saiu da roça e estudou em um colégio de padres na cidade, sustentado por seu tio, que era padre. Ela era filha de açougueiro e fazia um rolê vendendo cosméticos. Ela foi pra escola; ele pro seminário. Ele estudou história. Ela, ensino religioso. Passou um tempo. Ambos gostavam das letras. Ela quis estudá-las na faculdade enquanto ele permanecia rezando as mesmas no retiro. Ele queria ser padre. Ela, catequista.

Sabe-se lá que sonhos estranhos – quiçá eróticos – o tal jovem seminarista teve, mas decidiu largar o seminário. No mesmo momento, a moçinha inocente da cidade já tinha seus contatos profissionais desde o primeiro emprego no fórum – sabe-se lá também como, pois era tímida.

Ressalto: ambos eram tímidos (!). Ele saiu do seminário repleto de métodos, manias e sistematicidades: não aparava a barba, rezava três ave-marias a cada manhã e nada de chegar perto do que o diabo gosta. Bebida, nem pensar. Nem pra ele, nem pra ela. Pais bravos, os dois tinham. Não seria estranho que um dia se cruzassem pela vida num banco de uma praça qualquer e discutissem sobre a fonte, a igreja e o amor. Pois é, não foi. Ou melhor, foi, e foi mais ou menos assim, um pouco depois de se conhecerem:

- Que dia é hoje? – ela pergunta ao barbudo do sertão vizinho.
- 1º de Abril, Dia da mentira.
- E como sabe? Há de fazer alguma coisa hoje?
- Nem hoje nem amanhã.
- E por quê?
- Porque amanhã é meu aniversário.

A moça riu. Não conseguiu segurar a timidez, desconfiando da afirmativa do caipira como todo mundo faz em dia da mentira após receber uma observação curiosa ou boa demais para ser verdade. “Inocência tem limite”, pensou ela. O caipira não riu. Talvez porque fosse mesmo um caipira, ainda que dotado da cultura católica. Percebendo a hostilidade do clima e o acato do jovem mineiro, a garota insiste:
            
- Amanhã é mesmo seu aniversário?

Ele confirmou. Não sei ao certo se rolou uns parabéns da parte dela. Algo além disso não teve; no máximo um “tudo de bom”, ambos eram tímidos demais para tanto. E então se despediram.

Pra um jovem recém-saído de um seminário repleto de padres gordos e velhos em meio a adolescentes bitolados em altares e pais-nosso, um sorriso de uma loira interiorana sob o azul do céu em plena tarde pacata no banco de uma praça pode ser uma grande avalanche para o coração; uma espécie de prenda ou sugestão do destino. É claro que ele se apaixonou. O difícil foi ela encontrar razões para gostar de um caboclo sertanejo barbudo que acabou de sair do seminário. “Sem a barba, ele deve ser bonito” – há de ter pensado a jovem.

Encontraram-se mais uma vez – por acaso. E depois mais uma – por querer. E depois outra e outra e outra. Namoraram. O rapaz da roça não sabia ao certo se era mais difícil enfrentar a sua timidez ou a braveza do pai da moça. Namoravam na casa dela – até as 20hrs. Mais que isso era putaria, desacato à família católica dos amantes. De novo o impulso do tempo, do destino e dos hormônios fez com que ambos dessem outro passo importante nos problemas do amor.

O caipira arrumou um emprego no banco, ainda barbudo. A moçinha foi parar num cartório. Estabilizaram-se e depois se casaram. Era pra ser esse o final de uma história em que a única parte cômica foi aquela coincidência do encontro em 1º de abril. Poderia ser também o começo de uma história sobre uma família perfeita, politicamente correta e sem vícios de convivência – o filho mais velho não beberia, o mais novo estudaria e a genética do casal terminaria o resto do trabalho. Mas não, não foi assim.

Com 26 anos ele teve seu primeiro Happy hour, o primeiro copo gelado de cerveja – provavelmente deve ter comentado com os colegas de trabalho que a bebida dourada amargava a boca e que na próxima não ousaria nem provar, pediria um suco. Ela aprendeu a dançar, afinal, agora que eram casados, não havia horário que limitasse o pudor dos pombinhos. Com a cerveja ele acostumou; depois de um tempo, até incentivou que ela também estreasse no campo dos que bebem socialmente - em rodas de amigos, com salaminhos, amendoins e azeitonas. Por fim, gostaram. Haveria de ter cerveja nas compras do mês.

Ela adquiriu independência, dirigir ela já sabia, só faltava o próprio dinheiro praquele estereótipo da tão sonhada autonomia de mulher do século XX. Anos se passaram. Aprimoraram na dança, na cerveja e no sexo. Depois de uns anos, o primeiro filho nasceu.

Começaram a freqüentar novos ambientes – criar filho novo tem dessas coisas. Iam passear na praia e na cidade grande. Novidades não faltavam, mas a praia era quente e a cerveja começou a ficar pouca pro casal. As danças também passaram a cair na rotina e o pai de família foi buscar novos horizontes; acabou encontrando o samba. Tudo passou a mudar gradativamente, exceto pela barba do rapaz.

Não demorou muito pra que outro filho viesse. Quanto mais contas, mais problemas; quanto mais problemas, mais cerveja; quanto mais cerveja, mais samba. Foi aí que tudo mudou, num piscar de olhos, sem ninguém perceber – nem mesmo os filhos. Épocas difíceis expandiram o rol de amizades que foi muito além daqueles bons e velhos padrinhos de casamento. Quem via de fora estranhava: “um seminarista, intelectual, sertanejo, que toca percussão na roda de samba em meio a caixas de cerveja, não pode ser normal”. Nada que atrapalhasse.

Os filhos foram crescendo e comida não faltou. Bebida muito menos – até dizem que o mais velho se aventura nas artes do copo enquanto toca violão depois da faculdade. Samba também não faltou – o mais novo aprendeu a arte do cavaco e desbrava as madrugadas com batuque e lalaiá. Crises, várias; mas  marolinhas.

É incrível como o casamento – ou o amor – pode mudar os hábitos de um casal num desgaste de calendário.  Mudaram tanto ao longo dos anos que voltaram a ser quase a mesma coisa depois que os filhos cresceram. Um chocolate dele pra uma TPM dela. Um beijo dela pra enxaqueca dele. Açúcar e adoçante vivendo juntos no mesmo copo. O segredo para uma relação não é manter a mesma em segredo, mas com segredo(s).

Hoje cedo ele acordou, caminhou e não fez a barba; quem sabe pensou em pedi-la novamente em casamento. Ela, enquanto despertava, olhou para os dedos e deu falta nas alianças, até se lembrar de que as havia enviado para dar uma recauchutada.

Encontraram-se na cozinha, acordaram os filhos e tomaram um café daqueles que só a sinceridade da manhã pode nos proporcionar. Com mais quilos e rugas, com mais samba e cerveja, fizeram 25 anos de casados.