Ato de Café

(...)


- Deveríamos deixar de viver desse jeito.
- Como assim, Téo?
Em terceira pessoa, Gaia. Enxergando-nos de longe. Faço tudo como se me observassem: cabelo, roupa e copo. Sinto-me culpado por aquilo que não fiz. Você sente isso? Consegue se olhar de longe?
- Não.
- Por isso você é feliz.

Téo vira o copo, matando de súbito a dose que continha nele. Gaia não tinha decifrado a bebida; não precisava. De amarga, bastava a vida. 

Sobre a obviedade do ano novo

Em Dezembro todo cronista mostra a cara. É o mês da balança; um plantão para as reflexões do dia-a-dia que se acumularam até a chegada do ano novo. Até quem não escreve faz votos públicos por meio dos caracteres recheados de clichês e expectativas. As timelines das redes sociais ficam pequenas.

Quisera eu ser um Drummond e profetizar em Dezembro umas e outras coisas belas sem deixar de reconhecer as ruins. Mas o tempo não ajuda. Eu poderia dizer um sem-número de palavras capazes de adjetivar essa saga de trezentos-e-sessenta-e-cinco-dias que a gente chama de ano, reclamando e comemorando durante doze meses; mas não consigo.

Falta originalidade ao tempo. Quem sabe se o ano durasse uma década, ter-nos-ia assuntos novos e motivos de sobra para bater no peito e esperar o novo ciclo com um saldo positivo nos bolsos. A definição ocidental para o tempo se limitou à um petardo de estereótipos.

Você, senhora – coroa de dois filhos, marido e presente pra comprar – até vai conseguir entrar na academia depois da segunda semana de Janeiro e colocar em prática uma ou outra receita da Ana Maria quando o colega de trabalho do seu esposo for jantar na sua casa; mas não vai durar – no máximo até Abril, quando o Fantástico explicar a farsa da sua dieta.

Você, senhor – carro financiado, barriga de chope e contas a pagar – até vai conseguir beber menos, cortar o cigarrinho e atender ao que sua esposa católica apostólica romana pediu na época da quaresma e da menopausa; mas não vai durar – perderá o ritmo no primeiro churrasco antes do sábado de aleluia.

Você, adolescente – bixo de faculdade, com namorada nova e passado ilibado – até vai conseguir estudar, ser fiel e manter a forma e a convicção política longe de casa; mas não vai durar – verá de camarote tudo desabar depois da primeira cervejada da atlética e até vai achar graça nisso tudo enquanto estiver de ressaca.

Antes do meio do novo ano todos os votos e expectativas vão por água abaixo, escorrendo pelas mãos numa cusparada do destino. Os mais velhos se deixam levar por não ter mais nada a perder; são traídos pelo corpo. Os mais jovens corrompem a ideologia adotada em Dezembro ainda no começo do ano seguinte, quando chega o carnaval. Os mais velhos prometerão castigo aos mais novos; e estes saberão que aqueles não vão colocar a pena em prática, pois fizeram a mesma coisa em tempos passados.

Contenho-me com os pedidos e ambições de ano novo; chego a este sem quem era essencial na minha vida. Não encontro motivos para comemorar réveillon, senão por poder passar de um 31 de Dezembro para um 1º de Janeiro.