Primeiro retrato da loucura


Se move desatento, relaxado; como se pegasse carona no vento que lhe bate às costas. À medida com que anda, escuta alguém chamar-lhe ao fundo, mas não dá importância. Da maneira como sorri, qualquer pessoa se torna imperceptível aos olhos. Só escuta a si próprio, bem como à sua consciência. Consciência esta que lhe traiu ao tempo de provar-se capaz.

A vida esconde o momento da verdadeira prova, e não revela o resultado. Só se saberá da aprovação quando estiver no céu ou no inferno. Provar da incapacidade é um susto, uma surpresa do destino. De repente, descobrimos não conseguir pular um muro ou construir um diálogo sobre o clima frio da cidade.

Sua face carrega uma expressão cansada, abatida, mas também dotada de uma alegria inocente. Seu sorriso ignora qualquer fato alheio oriundo de novidade. De novo, o seu sorriso. É o mesmo, com sol ou chuva. Não que isso valha como um mérito; a bem da verdade é como se tivesse tomado um soco no queixo. Os furos em sua roupa denunciam a falta de cuidado – não propriamente consigo mesmo, mas por não ter ninguém que cuide de si. Apesar da freqüência com que se mostra, não sei onde mora – tampouco se possui um lar.

Observo-o pela manhã, descendo a Avenida Doutor Lisboa; na noite, é fácil vê-lo andando pelos bares. Tenho pra mim que não se lembra de quando perdeu a lucidez. Pergunto-me se há ainda uma memória dentro de sua cabeça. Vejo este louco passar e me apetece conhecer os seus gostos. Saber se prefere Pepsi ou Coca-cola, ou se vê diferença entre os pastéis mais populares de Pouso Alegre. Vejo o entusiasmo com que cumprimenta as pessoas na farmácia, no posto de gasolina e no boteco. Imagino-me no lugar dele – ao menos que por um dia; desconhecer das notícias, ignorar a falsidade, não decepcionar-se com a chuva, nem sofrer por amor; ter a serenidade de confundir os sonhos com a realidade; a paz de não preocupar-se com a realização dos planos. De viver sem ser vivido. Sentir na pele a indiferença, bater no peito e dizer: a ignorância é uma benção.