Orvalho

Esse frio que me põe à força um rendado de lã ou linho, como se o próprio tempo fosse o mandante de deveres e afazeres, sugerindo que a vida segue apesar de nossa indisposição para segundas-feiras. Essa cara que me embarba a face, como se eu fosse uma espécie de urso canadense preguiçoso, a não preocupar com os fios que me crescem sobre a pele. Essa manhã cinza e natural, que de tão natural está a me fazer pensar se vivo mesmo uma nova fase, ou seria isso tudo coisa da minha cabeça, a despertar de um vasto sonho em que eu caía de braços dados com alguém até um jardim subsolo repleto de flores e espinhos. Tudo isso é velho e novo ao mesmo tempo, e a vida é só um labirinto-amnésia, que a gente vive e vive e vive, repetidamente, porque esquece que já viveu a mesma coisa antes. E então, repito velhos hábitos em virtude de uma ocasião repentina, encarando o ato como se fosse inédito. Todo começo de inverno é começo de vida. Toda lã é primeira lã e todo vinho é primeiro vinho. Ainda pasmo quando vejo sair fumaça de meu sopro descompromissado. Há na rua pretensa elegância, uma ameaça de silêncio, como se o povo agora não tivesse tanto a falar, que combustível pra sereno é conhaque e chocolate. Uma moça me oferece carona e não questiono suas intenções, aceito-a por necessidade, até que me tolha todo o ar do peito com sua doçura ignorante, seu desrespeito com a inteligência humana, como se ela fosse uma criatura de Walt Disney, doce demais pra ser verdade, mas o bastante para enjoar. Troco as doses, aguardo respostas e o frio é sempre o mesmo, a resgatar da memória coisas boas e simples apegadas ao arcadismo de uma serra ou areia deserta de maio junho julho de dois mil e alguma coisa. Observo que as folhas caem e as árvores são agora raquíticos corpos nus, braços e galhos feito ossadas de uma criança africana que não sente frio, em que pese todos os pesares do mundo. No frio, aparecem-me velhas pessoas que matam a saudade, como se a minha saudade fosse logo a saudade do mundo todo, a clamar por beijos e abraços daquelas que um dia beijei e abracei e. Ainda pasmo quando vejo sair fumaça de meu sopro despretensioso. O frio é engraçado.




Foto: Fábio Brandão