A hora e a vez de João da Espera


(...) 

E de repente a vida soltou as rédeas. Fruto de um parto prematuro, ele se deixou levar pelo vento. Alimentou-se na estufa da esquina e se esqueceu de tomar vitaminas. Caminhou sozinho. Cruzamentos, viadutos, becos; o destino até parece um labirinto. Um dia, no ponto de ônibus, como que à sua espera, encontrou alguém. A pessoa, então desconhecida, lhe disse coisas que nunca havia escutado. Num ímpeto, decidiu levá-la consigo. Caminhou acompanhado. Os cruzamentos, viadutos e becos, pareciam diferentes. Pelo nascimento antecipado que tivera, passou a ter os sentidos comprometidos. O que parecia sinestesia era deficiência. Até pensou em pedir à pessoa para quem dava as mãos que lhe dissesse o real cheiro do Centro ou as cores do semáforo. Saber quando ir sempre foi, para ele, coisa das mais importantes. O verde e o vermelho têm um quê metafísico, instintivo. Em dias tristes, quando nada o esperava, não se importava em aguardar os segundos procrastinadores do sinal rubro. Se o outro dava às caras, não notava e chamavam-no de lento. De maneira semelhante acontecia nos dias de chuva – a consciência se afogava no café e a audição não era capaz de distinguir um choro, de um riso. Uma distração lhe fazia esquecer agora das datas. Lembrava-se de que tinha uma pessoa, mas se confundia quanto a ela. Sabia que gostava. Bastante. Com ela, até aprendeu a falar. Mas demasiado distante de alcançar qualquer solução. Sua inteligência era dotada de uma vontade morta, uma paisagem sôfrega. Devo ter mencionado que o sujeito dormia n’uma estalagem; acostumara-se com o silêncio. Acostumara-se com pouca gente. Tão díspare. A poucos metros do portão de ferro enferrujado que delimitava o espaço em que dormia, uma multidão marcava passos e compromissos. Gritavam-no; principalmente na madrugada. Vândalos e adolescentes invadiam a estalagem a fim de valerem-se de transas e ópio. Fingia que não escutava; desejava que sua pessoa estivesse consigo também à noite. Inclinava levemente a cabeça em busca de uma posição confortável de descanso; em vão. Tinha um charme tosco, um tom de pena, como um corcunda de Notredame contemporâneo. A história trocou a catedral por um galpão. A impotência de calar-se ante o mundo, de viver sempre à espera, de desconhecer quem o possuía, fez com que o homem adquirisse impaciência. Passou a orar por um dilúvio – um desastre poderia arrancar de maneira atroz as telhas da estalagem – e se tivesse sorte, quem sabe um raio o atingisse. Não tinha princípios, mas uma ternura que lhe roubava qualquer tipo de malícia. Nada que lhe tirasse a desconfiança. Nos sábados gostava de caminhar com a pessoa querida pelos mesmos cruzamentos, viadutos e becos. Passavam também pelo mesmo ponto de ônibus, esperando encontrar outra pessoa que se somasse à solidão. Para uma vida tão despercebida, inútil é que eu repita a rotina deste sujeito – percebe-se, de praxe, que uma novidade aqui seria tão improvável quanto a ebulição de um vulcão adormecido. Ocorre que um dia, num raio do destino, João da Espera decidiu voltar a caminhar sozinho. Atravessou o perímetro da estalagem, desviou das tralhas que ocupavam o seu caminho e, de súbito, sentiu a sensação de que nada o traria de volta. Não levou nada – documento não tinha, tampouco alimento em mãos. Passou a ouvir comandos e conseguiu enxergar o azul do céu. No primeiro cruzamento, um carro parou para que atravessasse. No beco, admirou um grafite que destacava o desenho de um homem que se parecia com ele. Foi até a esquina; o semáforo estava verde. Passou a pé sem pensar, como se suas pernas tivessem correntes, e o abdômen, um motor. Desta vez algo o esperava. Só teve o impulso freado quando parou em frente ao ponto de ônibus. Por um motivo que desconhecia, entrou no coletivo que parou ao sinal de uma senhora. O pouco trocado que tinha bastou para que pagasse a passagem. Sentou sem pensar. Com o rosto colado à janela do ônibus viu a cidade passar no caminho. O céu azul deu lugar a um negrume de nuvens que se acumularam como um tufão. A chuva que chegara aumentava gradativamente à medida que João da Espera se afastava da paisagem local. Um dilúvio caiu na cidade da luz. Os carros foram abandonados no meio da rua e o concreto das casas foi descoberto pelo vento que acometeu as telhas e calhas. Um raio caiu na estalagem. Em face da distância, o ônibus seguiu. Nunca mais viram João da Espera. Saber quando ir sempre foi, para ele, coisa das mais importantes. O destino até parece um labirinto.