Terapia



Sabe o que é, Doutor: eu não tenho nada. Não sou doente não. Minha esposa me mandou aqui. Disse ter ligado pra secretária na terça, não, na quinta, sei lá, mas não tenho nada pra falar. Não gosto muito de silêncio, se é que me entende. Nem tenho tempo pra isso; no banco é uma correria: caixa, conta, porta giratória – é tudo uma loucura. Tenho cara de louco? Então, Doutor, não é pra eu estar aqui, não senhor. Ademais, não me agrada a ideia de ficar falando sozinho. Se o senhor quiser saber da minha história, podemos muito bem marcar uma cervejinha no bar do Jair, logo ali, em cima da Igreja, sexta-feira seria ótimo. E esse jeito de conversar deitado, olhando pro teto? Quem inventou? É pra ficar reparando que o ventilador está sujo? Estranho né, Doutor, quando eu era novo costumava reparar nas coisas; agora velho, com a vista cansada, tudo parece tão igual. Minha esposa, a Ruth, vive reclamando que não reparo nela; no cabelo, na unha, na roupa. A coitada também me vem falar da vida na hora do Jornal, ou atrasa e bate com o maldito horário do jogo, puta que pariu, né Doutor, tanta coisa pra preocupar: o goleiro do meu time, a dor nas costas, o caixa no banco, e a Ruth vem me alugar justo na hora errada. Eu reparo nela sim, sei até o dia que ela vai à missa, é sempre no Domingo, Doutor. A gente até deita junto, mas eu durmo primeiro. Ela não gosta, fica brava, diz que faz questão de conversar, que é a única hora do dia que a gente tem, que de manhã é uma correria maluca pra levar os moleques pra escola. Puta que pariu, né Doutor, fico o dia inteiro naquele inferno, já até perdi dinheiro, e a vista cansada, a dor nas costas, o goleiro do meu time, e a Ruth me cobrando que eu não reparo nela, que eu durmo primeiro e que eu não levo os moleques pra escola. Já fiz muito isso, Doutor. Quando a gente casou, eu fazia o café e até buscava o pão. Mas hoje, com essa dor nas costas... O gerente do banco ta me cobrando, fica falando pra eu ficar de cara boa com os clientes porque é a nova política da empresa. Puta que pariu, política da empresa, manda o empresário vir contar dinheiro no meu lugar então. Já te disse que perdi dinheiro esses dias? Não dá, Doutor, a vista ta cansada. A propósito, já comecei a falar, o senhor não vai dizer nada? O que quer saber agora? Dos meus filhos? Já te disse que tenho filhos? Me estouram a paciência, fico puto. Uma desorganização, um descaso com a vida. Na idade deles eu já trabalhava, e ai de falar alto com alguém, tomava um tapa na boca. Mas são bonzinhos, os dois. Pelo menos não usam drogas. Filho viciado eu não aceito. O filho do Vitor, por exemplo, é um puta maconheiro – já até falei pro meu mais velho ficar longe. Educação moderna é difícil, se é que o senhor me entende. A escola mete tanto o bico que to quase entregando o mais novo pra ela cuidar. Te falei que sou casado mesmo? No papel? A Ruth é gente fina, mas não sei, não tenho mais tanto tesão, sabe Doutor. O sexo não é dos piores, mas também não faço tanta questão. Fazer amor é bom, todo mundo sabe. Mas parece companheira, amiga, sei lá. Fico meio sem graça de pedir pra ela fazer algumas coisas. Não a traio não. Mas meu olho não tem dono, se é que o senhor me entende. Não posso ver a filha do Seu Tomás da padaria que fico louco, Doutor. A menina é uma delícia. Mas não traio ela não, tadinha, imagina a Ruth, ia ficar triste demais. A Ruth esses dias deu pra falar da minha barriga, como se a dela também não tivesse crescido. Veja só, com essa dor nas costas, essa vista cansada, esses dois moleques, se eu não tomar uma cerveja no fim do dia, prefiro morrer de vez. Não tem jeito, Doutor. Estou cansado. Sinto sono o dia inteirinho. De vez em quando vou ao banheiro do banco, tranco a porta, sento na privada e tiro um cochilo. Ninguém vê, pensam que estou cagando. Não dá, Doutor, é muito sono mesmo. Minha esposa até me deu vitamina pra tomar, mas eu esqueço. Tanta coisa pra lembrar, conta de água, luz, telefone, puta que pariu. Bonito o ventilador do Senhor, já consegui reparar, é de bronze né? Se minha esposa visse, ia querer um igualzinho, haja dinheiro. Sabe, Doutor, o meu pescoço ta doendo de ficar deitado assim, vou levantar, acho que já deu, fiquei até sem graça, só eu falei, mas foi bom, Doutor, não doeu nada, com 55 anos, confesso, foi pior fazer o exame da próstata. Olha, conheci o senhor agora, mas hoje é sexta, sabe como é, tem um joelho de porco e um copo de cerveja me esperando, ali em cima da igreja, no bar do Jair, e já é tarde, não posso atrasar, o Roberto e o Armando já pediram até outra mesa, vamos comigo, Doutor, a gente passa em frente à padaria e eu te mostro a filha do Seu Tomás, uma delícia.

2 comentários: