Na serra

Não era bem isso o que eu queria te escrever. A primeira ideia era aquela da ampulheta, em que estaríamos os dois soterrados pelo amor e pela areia que caía em nossas cabeças, devendo – ambos – encolher o orgulho para sucumbir ao tempo e ao ar, atravessando o estreito funil de vidro. Porque é esse o fim do amor. Respirar juntos, como se o pulmão de um fosse o bastante para salvar o ar do outro, como daquela vez que você me salvou no alto da serra, quando não conseguia respirar de tanta asma, de tanto pó, de tanta altura. Não havia remédio nem bombinha que me salvasse, mas você esquentou pra mim um leite com Nescau e aquele foi o mais sincero antialérgico que tomei desde que me entendo por gente. E depois descemos atravessados de mãos dadas aquela trilha sem luz, sem coragem, confiando apenas no destemor de um cachorro vira-lata que guiava nossos passos. Foi aí que o cachorro parou e latiu pro nada, e ficamos os dois a imaginar se não era coisa de espírito essa coisa de os bichos pararem e latirem para o nada. Se bem que eu não pensava em nada, demasiado afoito estava com a falta de ar e o meu peito mais se parecia a uma sanfona, um forró de desespero, um arcodeon asmático. Depois foi preciso esperar ao pé da estrada que meu pai nos buscasse à luz da lua e da madrugada, que homem que é homem não tem medo de escuro, mas não é homem o bastante pra morrer afogado no alto da serra. Sabe, amor, naquele dia você me salvou. Tenho pra mim que foi naquele dia mesmo que me apaixonei, pois não se acha em qualquer esquina mulher que lhe esquente o leite e lhe sirva tal dose como ampola de remédio. Cheguei em casa comparando os leitos, há um momento mesmo estava morrendo no alto da serra e agora jazia quente sob lençóis domésticos. Agradeci em segredo a minha doença, pela primeira vez era bom ser asmático. Se eu não perdesse o ar, você não me salvaria e eu não poderia ver seu pranto pela cara que fazia a cada suspiro da minha sanfona pulmonar. Eu bem devia ter-lhe dito isso há um bom tempo atrás, logo depois do resgate ao pé da serra, declarando o meu amor e a graça de ter você para salvar-me. Mas preguiçoso faço-o somente agora. Seu tamanho de mulher foi além, não se restringia ao fato da salvação, mas primeiro por ter subido aquela trilha comigo, numa quinta-feira cinza e chuvosa, sem contato nenhum com cidade nem concreto. E isso é coisa de mulher, não de menina, que mulher de verdade é mulher em qualquer lugar – no shopping ou no mato. Você é mulher – e por isso te amo. E hoje, se perguntarem-me por que me apaixonei, digo primeiro por quem: você. Depois complemento com a história da serra, pois não conheço macho que não assuma seus erros e não se apaixone por Débora que lhe salve as pernas e os peitos. Esqueçamos nossos pecados, é preciso pedir perdão pra conseguir salvação. Deixemo-nos à conta do amor, que casal que é casal se dá chance, seja no cinema do shopping ou no alto da serra, peito com peito no estreito de uma barraca à luz da lua e à sombra da noite. Te amo porque você é mulher.

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