- Qual o nome da Senhora?
- Estou tentando descobrir faz tempo.
- Como assim, não sabe o seu nome?
- Preciso escolher um especial.
Afinal, nome é coisa nossa.
A velha afirmou certeira, num petardo
de sabedoria. Da maneira como foi solta, a frase não aceitaria contestações.
Concordei com ela e apresentei-me com meu nome. Em seguida, uma enfermeira
aproximou-se de mim e esclareceu a problemática: a senhora tinha Alzheimer. Na
vida fora do asilo, havia sido professora.
Insisti em conversar:
- A senhora era professora de quê?
- Ah, meu filho! Não vamos falar de
mim...
Concluiu num tom triste, melancólico.
Decidi não prolongar o papo.
Foi o primeiro diálogo metafísico (de
muitos) que tive no dia de ontem. O asilo é como uma grande corda estendida,
prestes a arrebentar. E, vai por mim, essa corda te dá um nó na garganta.
Cheguei lá com um grupo de mais ou
menos quinze pessoas. Todos com a cara pintada, bexigas e perucas; inclusive
eu. A cena da entrada parecia-se com aniversário de criança. Todo mundo batendo
palmas, anunciando a chegada de gente querendo passar alguma mensagem positiva
num contexto que não abre (muita) margem para tanto. Já tinha participado de
outras visitas com esse pessoal. Muda-se o asilo e o orfanato, mas não a
surpresa. Gente carente que te olha com jeito estranho, indagando o porquê de
existirem pessoas afim de trocar a cerveja do sábado à tarde pela companhia de
um abandonado. Há exceções.
O segundo ancião com quem conversei
tem um nome que me agradou. Nutri por ele um afeto especial. É um velho
ranzinza, sarcástico, desiludido. Daqueles que falam palavrão e não ignoram a
condição solitária de quem está no asilo. Sem demagogia. Gosto disso. Estava
amarrado na cadeira de rodas – amarrado mesmo – não procurei saber o motivo.
Olhou para mim como se não visse graça no meu rosto pintado de palhaço. Uma
enfermeira se aproximou e sugeriu uma foto nossa. Ele resmungou. Ela pediu pra
fazer tchau. Eu fiz. Ele a mandou tomar no cu (com gestos). Pronto, foi o
estopim. Pra mim bastou. Gostei daquilo. Já éramos quase amigos. Conversamos, e
ele pediu uma Coca-Cola. Quando cheguei com o copo de refrigerante a enfermeira
me alertou: cuidado, ele é bravo, pode cuspir tudo em você. Não cuspiu.
Enquanto conversávamos, me chamava de jovem em tom bem jovial. Quando ficou
sabendo que estavam distribuindo balas, o velhinho ficou doido, parecia
criança! Comia bala e pedia mais. Missão cumprida; levei bom humor pra quem
menos esperava. Era a hora de procurar um próximo.
Estávamos todos numa espécie de
salão. Os velhos (a maioria sustentada por cadeira de rodas e com a saúde bem
debilitada) estavam distribuídos ao longo de uma grande mesa. Fiquei meio
perdido, como de costume, em encontrar alguém disponível para bater um bom
papo. Olhava de um em um, reparando nas sondas, nos soros, nas rodas. Acenava
compulsivamente esperando retorno. Seria demais exigir paciência de qualquer um
deles. Imaginei-me em seus postos. Que conversar que nada, eu ia querer mesmo pedir
um chope. Criei uma estratégia: “vou acenar para todos, quem corresponder, eu paro
e converso”.
Deu certo! Um velhinho da voz baixa
sorriu pra mim. Conversamos! Mas por que essa exclamação, me pergunta você.
Conversamos sobre mulheres. Sim, o velho, no auge dos seus 83 anos, veio me
falar de mulher. “No meu tempo, eu não perdoava nada, meu filho!”. Olha que
coisa linda. Juventude é juventude. Ao seu lado estava um outro com a camisa do
Palmeiras. Corintiano que sou, fiz piada. E não é que o velhinho ficou
ofendido!
Permaneci com a tática do aceno correspondido.
Troquei ideia com vários outros anciãos. Perguntei se gostavam do asilo, por
que estavam lá, há quanto tempo. Uma velha me chamou de gostoso e tascou-me um
beijo no rosto. Era daquelas bem humoradas. Também gostei daquilo. Com uma
intensa naturalidade ia surgindo uma boa história atrás da outra. Curiosidades
e detalhes com a importância de um segredo de Estado. Desde um Coronel
aposentado que bebia vinho escondido no almoço até um senhor negro que cantava as
modas de viola que tinha decorado. Este aí declamou “Reino Encantado”. Tinha
uma gaita em mãos, e nos pulsos 3 (três!) relógios. Obviamente que perguntei:
mas pra quê tantos? Respondeu, “ganhei, não tenho culpa que gostem de mim”. Os
relógios estavam pontuais, tal como o velho, que tinha um bom humor de dar
inveja a esquerdista radical.
O tempo foi passando e eu já não
esperava mais nenhuma surpresa. A bem da verdade, preparava-me para despedir. Foi
quando encontrei uma senhora de olhos azuis. Oitenta e sete anos (!), quase uma
moça. Foi a melhor das conversas, e com quem dispendi o maior tempo. Era
espírita. Filosofou sobre isso. O marido morrera e a irmã a abandonara. Mas seu
bom humor era irredutível. Conversamos (e como!) sobre tudo. A pauta variava
entre cinema e sexo (sim, sexo). “Vocês transam muito fácil!”, concluiu na
primeira oportunidade. Ela decorou meu nome de imediato, gostei disso. A velha confidenciou
que não via a hora de morrer, sonhava direto com a morte. Quando chegar a hora,
disse que quer ser cremada. Acha um absurdo os filhos desrespeitarem esse
desejo. Comentei com ela que em Pouso Alegre não há cremação. Despedi-me com
muito pesar.
É gente que já viu de tudo. Que viu
morte, que viu vida. Provaram da guerra, da censura, e até do aquecimento
global. Podem concluir que Pelé foi melhor que Maradona; leram Nelson Rodrigues
no jornal; viram Brasília ser construída. Não há surpresas para quem está no
asilo. O tempo caleja o peito. Volto ao primeiro diálogo em que aquela senhora
dizia não saber do seu próprio nome. Imagino que isso seja uma benção
distraída. Um disfarce para a tristeza. Quanto vale sua identidade? Quanto vale
esquecer-se dos teus pecados? O que fazer com os segredos da juventude? A vida
é engraçada.
Gu, o que te falar heim?! A cada dia vc se supera e me surpreende mais.
ResponderExcluirVolto a repetir, está na profissão errada! hahaha
Parabéns!
Muito legal a sua experiência!
ResponderExcluirGostei muito de ler e imaginar cada cena.
Parabéns pelo blog!
E situações como essa dão ainda mais vontade de conhecer gente... enquanto a gente vive nossa vidinha cada-um-na-sua, sozinhos e distanciados uns dos outros, tem tanta pessoa importante e com coisas pra dizer só que sem ninguém pra ouvir...
ResponderExcluirUma sabedoria que a gente se esqueceu de valorizar!
Gente é muito bom...
Muito bom negoooo!!! Parabéns =]
ResponderExcluirGosto da sua maneira escrever, acho bonito justamente por falar de coisas que só são bonitas se soubermos ver além. Este texto revela a necessidade de olhar para fora, olhar com os olhos alheios(ando introspectiva em excesso)para encontrarmos as respostas,ou mesmo as boas perguntas que nos movem. É preciso doar uma parte de nós para os outros.
ResponderExcluirbeijos.