Sobre outras perdas e Elegias

Quem visse a cena de fora com certeza daria risada – na certa encararia como brincadeira o que aquela senhora estava fazendo, rezando pai-nosso e ave-maria com o megafone do neto em mãos. Megafone, que, diga-se de passagem, estava com o volume no máximo. O instrumento que já foi utilizado por policiais e estudantes, revolucionários da direita e da esquerda, estava ineditamente sendo utilizado como meio para propagar as orações católicas de uma senhora dotada de fé, netos e bisnetos.

O momento em que se passou a dita cena foi na última ceia de natal. Toda a família presente naquele clima que só o Dezembro ocidental pode proporcionar: primos bêbados, tios bêbados, crianças comparando presentes e mulheres empanturradas de comida pela ceia que foi posta à mesa.

Após as orações triviais a senhorinha arriscou uma reza em línguas, que misturada ao eco do instrumento em mãos e a descontração do clima, acabou por se tornar algo ligeiramente caricato, fazendo com que todos segurassem o riso. Olharam-se os netos, os tios e até os cães, esperando o final da oração para que pudessem servir a comida posta à mesa. Quando ninguém aguardava mais nada da boca da avó, eis que surge um breve “Atacar(!)” proferido por ela. Ninguém segurou o riso – netos, genros e derivados gargalharam e a velha levou a pérola na brincadeira.

Foi um bom natal pra uma família que recentemente vivenciou uma tragédia – pensei em aliviar na definição, mas o termo foi inevitável. Sim, foi uma tragédia, que nem a hermenêutica dos Maias pode interpretar ou dar consolo a todos que foram atingidos pelo impacto. Cogitei se teríamos mesmo um natal depois do que tinha se passado, mas com tradição não se brinca. A Família da Dona Inda sempre prezou pelo mês do nascimento daquele que chamam de salvador. Há fartura nos pratos, nos copos e até(!) nos corações – não é estranho deparar-se com parentes ímpares trocando idéias e experiências no momento da ceia ou do tão batido amigo oculto.

Ninguém reparou, mas a matriarca – genitora de um filho e de uma penca de mulheres – precisou de muito jogo de cintura pra conseguir manter o clima coloquial de que todos sempre se valeram. Dotada de uma serenidade de quem já muito se esbravejou, ela não condenava as mesas de café, fofoca e jogatina que compõem a rotina das mulheres da família. Tampouco julgava o porre dos netos e dos genros depois das tantas caixas de cerveja. É quase uma regra: se cansa na juventude para descansar na velhice. A verdadeira serenidade só vem depois de muita luta.

Tive com ela quinta passada, no hospital. A senhora tinha sido internada às pressas por uma razão que eu desconhecia. Cheguei ao momento em que ela mudava de quarto, e ainda que tenha sido escasso o tempo do diálogo entre nós naquela noite, denso foi o conteúdo que nele se constava. Minha avó comentou sobre meu texto e a minha barba, soltando um suspiro de cansaço depois disso. Quando ia me despedir, pediu oração.

Confesso que não sou doutor em orações – e diferente de muitos outros, creio que religião se discute sim. Nunca foi tabu conversar com a Inda, velha rezadeira, sobre a conduta dos padres em pedir dízimos incansavelmente ou em atrasar demasiado a missa e a cabeça dos fiéis. Voltei ao hospital no outro dia e não houve diálogo; ela estava mal. É claro que a preocupação existiu, mas de uma forma muito displicente, de modo que me fez até planejar uma viagem no fim de semana para entreter o estrangeiro que estava dormindo em casa.

Na madrugada do outro dia recebi a notícia de que a senhora dos terços e dos cafés tinha se ido. Senti no peito novamente o soco ácido que só a morte pode proporcionar. Vi-me de novo naquela manhã de 4 de Setembro. Vi minha mãe aos prantos, ainda que longe de casa. Vi o incerto. Visto de longe, parece mais fácil assimilar a perda de uma anciã, que já viveu o que tinha pra viver. Visto de perto, morte é morte; não tem idade, nem arrependimento. Senti a brisa fria da madrugada na cidade e escutei a música ambiente; de volta à utopia da paz. Um estar longe de tudo, um dejavú de sensações, como se eu já visse e previsse tudo aquilo que acabara de receber. Como se eu ignorasse a frieza do destino.

A hora de ser forte é agora. Dar escora, dar lembrança, dar amor. Na nossa família ninguém vai entregar o ponto. Uma onda de pesares, uma ressaca de serenidades. A verdadeira paz só vem depois de muita luta. Quem sabe será mais fácil com você aí em cima, Vó.

5 comentários:

  1. Sem palavras...
    força, Gu, muita força pra ti!

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  2. Meu Deus, é incrível sua capacidade de montar toda uma cena na cabeça dos leitores e fazê-los chorar e sentir "o soco ácido que só a morte pode proporcionar". Força, Gu!

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  3. Mtoooo bom!!!

    Segue na paz e mta força cara!!!

    http://www.luismacedo.com/

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  4. escrevi um comentário gigantesco e deu pau na hora de enviar quando a gente se encontrar me lembra que eu comento com você!

    estou aqui ...
    beijos
    Sua prima, Aline

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  5. woow *--* tipo não sei o que falar ( o que escrever)

    (vejam as novidades de http://liceucultural.wordpress.com/
    nosso face: http://www.facebook.com/LiceuCulturaDevenir)

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