Carta para um anjo

Caro Rafa,

Mas que atalho inconveniente foste atravessar. Logo você. Logo você que dormia em montanhas, morava num jipe e rapelava paredões de pedra. Logo você que me ensinou a dirigir. Lembra? A praia de Ubatumirim era deserta, a cerveja era gelada e o carro não chegou a morrer, ainda que fosse de areia o que sustentava nossos pneus. Fazia sol. Sempre fez sol quando estávamos juntos. Mal sabe o sol que perderia para você o posto de estrela-maior. Ah, o sol! Este mesmo já não faz mais sentido e eu até já mandei desenharem no horizonte outro astro, outra luz, com outro nome. Acredite Rafa; eu fiz isso. E sabe por quê? Porque o sol não pode mais se pôr sem sua principal platéia; sem eu e você, juntos. Lembra de quando assistíamos de camarote ao pôr-do-sol? Lembra Rafa? Economizávamos no café, poupávamos na cerveja e comprávamos vinho barato a fim de abastecer o tanque do Jipe; abastecer o tanque e a alma, o bastante para encontrar o horizonte e a paz de espírito. Mas que ironia, Rafa; que ironia. Que ironia você se pôr em minha vida; como uma estrela que desaparece na linha mais reta, obedecendo, pura e simplesmente, às leis divinas e naturais. Obedecendo a seu próprio tempo; seu tempo de anjo. Está escuro, Rafa. Estou escuro. É um negro triste, que não é de treva, mas de saudade. Você apagou a luz da minha vida; como um irmão mais velho apaga a luz do quarto num sutil toque no abajur; e sai, pé ante pé, pela fresta mais próxima, a fim de proteger o sono do outro; o sonho do outro. Mas eu, Rafa, eu que sou seu irmão mais novo, não posso dormir, tampouco sonhar. Insônia e pesadelo se misturam no cômodo do meu peito; no quarto da minha saudade. E eu não descanso, Rafa. Eu não vou sossegar até que veja uma nova estrela acima da minha cabeça. Porque você, meu irmão, ainda é mais importante do que qualquer Ursa maior, Cruzeiro do sul, ou qualquer outra constelação bocó. Porque da luz você vieste, caro Rafa, e não é outra coisa senão estrela. Tenho hoje meu próprio universo. Minha vida sem você é um universo, primo. E sabe por quê? Porque tenho no presente e no meu peito mil-e-um lugares inabitados e o que eu conheço ainda é muito pouco. Sabem-se lá quantas galáxias habitam em nossos corações, meu amigo. Mas deixemos a metafísica. Não somos bons com ela. Conte-me do paraíso. Como é tudo aí em cima? Pode-se beber cervejas de trigo como aquelas que tomávamos nos empórios? Aguardo resposta. Lembre-se que isso é uma carta, uma correspondência, e a mesma não faz qualquer sentido se não houver resposta. Não é porque você é um anjo que devo dirigir-me a ti em forma de oração. Não é, Rafa. Falando em anjos, sabe que hoje a existência deles se tornou plausível para mim? Anjos mesmo, primo. Daqueles de cabelos loiros e olhos claros, assim como você. O que disseram aí em cima do teu histórico? O que disseram de mim? Eu que ficava sempre puto com a vida, Rafa. Eu que ficava sempre puto com teu atraso. Eu que – REPITO – ficava sempre PUTO quando perdia a chave do carro, a carteira ou o celular. Eu que agora perdi você. De nada adianta as pequenas coisas, Rafa. É tudo supérfluo. Não me importo com mais nada, que não o sangue que corre em minhas veias. O mesmo sangue teu. A muralha do meu ceticismo contrasta hoje com a esperança da vida eterna. Falo sobre a eternidade da sua vida, não da minha. Eu não teria saco, pretensão ou paciência de anjo para viver eternamente. Não rezei direito ainda. Sou gauche em orações. Preciso mesmo rezar por você? O bom senso me diz que deveria ser ao contrário. Aproveitando o ensejo, peço para que reze por mim. Reze, Rafa; porque eu preciso. Ainda lembra-se das minhas queixas, primo? A porra do meu trabalho, a mesquinhez da minha faculdade e meus amores mal-sucedidos? Breathe in the air. Vou escutar nossas músicas, quem sabe passe. Vou ouvir Pink Floyd. By the way... Gostou da música que toquei pra ti hoje? Os acordes de “Mother” acompanharam liricamente os centímetros do seu túmulo; e eu me senti vivo. Foi uma linda cerimônia, não?  Não sei como é seu tempo aí no céu. Vou me despedindo e aguardo respostas – positivas. Que você continue a ser minha luz: o abajur do meu quarto, o farol do meu barco ou o sol do meu horizonte. Um grande abraço “peteteco”. “Alu Mará” e bom futuro!
“Shine on you crazy diamond!”

Gustavo Faria.          
5 de Setembro de 2011.

5 comentários:

  1. Parabéns pela carta Gu...
    Foi mto bonito o que vc escreveu...

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  2. E os dias tornam-se lentos, talvez na escrita reta ainda esteja verdade, nenhum personagem resistirá ao tempo. Talvez estórias e lembranças sejam mesmo a eternidade dos olhos. Continuas meu caro e na candura das lembranças... brilha.
    Ao sul de nenhum norte caminhamos rumo a dias mais vazios, mas caminhamos, tu sobre outros olhos, continuamos, mesmo que sempre sejam ecos as respostas... Fica bem, sei que não ha base, mas quando precisar de um ombro amigo, tens um aqui. Força.
    "há um lugar no coração que nunca será preenchido" - Charles Bukowski

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  3. A única coisa que me veio na cabeça, além de lágrima que veio no olho, foi uma música do death cab for cutie, que se eu não soubesse que já foi escrita, pensaria que foi você quem fez.
    Essa vida é difícil demais, as perdas são devastadoras e eu acredito que o mistério maior seja como a gente é capaz de aguentar isso tudo e seguir em frente. Eu já passei por isso, várias pessoas também... mas cada um tem sua forma de sentir dor, cada sangue que sai por dentro é diferente e não tem como comparar.
    Então o que eu posso te falar é isso... desejo que o mistério que dá forças a quem precisa te faça ser capaz de seguir adiante, mesmo com esse buraco enorme que está dentro de você e que nada nem ninguém pode amenizar, pelo menos não agora. E que o sono do seu primo seja doce, e tranquilo e sereno onde ele estiver, sem dor, sem medo e sem escuridão alguma... o que levou ele daqui passou, e com certeza ele só sente paz agora e quer que você sinta o mesmo. :)

    "Meu amor um dia você irá morrer
    Mas eu vou estar logo atrás
    Eu vou seguir você até a escuridão
    Não haverá luzes que cegam nem túneis para portões brancos
    Só nossas mãos apertando-se fortemente
    Esperando pela sugestão de uma faísca
    Se o céu e o inferno decidirem
    Que eles dois estão satisfeitos
    Ilumine os nãos em suas placas de "há vagas"
    Se não houver ninguém do seu lado
    Quando sua alma embarcar
    Então eu vou seguir você até a escuridão..."
    (I will follow you into the dark - Death Cab for Cutie)

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  4. Olá,
    Sou uma verdadeira fã das suas escritas... Certamente, você nao me conhece e moro a muitos e muitos kms de distancia de vc... Mas, confesso que, quanto mais leio suas postagens mais me delicio no mundo em que eu sempre notei em mim, mais nao sabia expor... vc escreve o que costumo pensar... É muito bacana encontrar um lugar em especial, nessa vasta oportunidade internautica... onde possa sentir conforto e necessidade de evolução.
    Simplesmente lindo!
    Nunca deixe de escrever, pois tem alguem que se alimenta de seus pensamentos.
    Abraços...

    Milena Simões - Manaus / AM (92) 8260-6561
    milena_simoes2005@hotmail.com

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  5. nossa adorei esse blog o jeito que vc escreve sempre estarei aqui ><


    (vejam as novidades de http://liceucultural.wordpress.com/
    nosso face: http://www.facebook.com/LiceuCulturaDevenir)

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